Os Quakers – XI
O Espírito Divino está em cada ser humano. Todos têm acesso imediato a Deus e Deus a nós. Todos são ministros, pastores, não há assim ministérios ordenados, nem edifícios consagrados, como não existe o que designam como celebração externa dos Sacramentos. Assim, em síntese, se definem os Quakers, que adoram Deus reunidos em silêncio expectante da Sua orientação, que chega através da quietude ou da palavra dos que são movidos a falar. Muitos consideram um retorno ao “Cristianismo primitivo”, aberto e plural, para qualquer um poder ter verdadeiramente a religião do amor ensinada por Jesus como um modo de vida e o único modo que deve existir no quotidiano.
Assim poderíamos definir os quakers, um grupo que não ultrapassa as três centenas de milhares de fiéis em todo o mundo, mas tão peculiar e original, na simplicidade e no despojamento, na ideia do sacerdócio universal, do quietismo, do silêncio, da discrição absoluta. Que não depende da Bíblia nem da tradição patrística, mas sem as desprezar, delas retirando inspiração e ensinamentos. Todavia, a crença genuína não pode ser em “segunda mão”, dizia George Fox, deve provir directamente de cada um, pois existe “Deus em cada um”, a base fundamental do Quakerismo.
Os quakers mais antigos defendiam mesmo a não necessidade de um “ministro mercenário”, ou seja aquilo que designavam como alguém a ser intermediário entre o indivíduo e Deus, conferindo a cada crente a oportunidade e a obrigação de procurar a liderança de Deus, de forma individual ou colectiva na adoração silenciosa e quietista. Tal como os “autores” dos textos da Bíblia foram inspirados, iluminados, também nós, cada um, poderá experimentar a manifestação da luz interior, isto é, a revelação contínua de Deus.
Na igualdade e respeito a todos, os quakers procuram definir uma liderança para responder às necessidades de todos os povos, sem imposições de força nem com necessidade de se fazerem juramentos, pois há apenas um único padrão de verdade, assente no compromisso de viver simplesmente para que os outros possam simplesmente viver, como lembrava Fox. Vivendo os Sacramentos interiormente, de forma plena e continuada, em vez da sua observância externa e intermediada.
Os quakers acreditam piamente na paz, que é alcançável através do esforço de confiança no amor, em vez da reacção ao medo. Ou seja, apesar de parecer passiva na quietude e silêncio, na autonomia e sacerdócio universal, é activa e determinada a fé quaker, pois impele-nos a agir e não a reagir, mas em conformidade com o amor e a verdade. A sustentar a sua fé optaram por “testemunhos”, espirituais e éticos, em vez de credos, doutrinais e teológicos, estanques e dogmáticos, na crença quaker. Por exemplo, a vida exterior de uma pessoa deverá ser um testemunho da verdade discernida interiormente, na adoração silenciosa e na descoberta do Espírito em cada um. Igualdade, integridade (harmonia e vivência das crenças), paz (não violência e soluções para os conflitos), simplicidade (viver para que vivam em simplicidade, sem excessos, intencionalmente e em fidelidade à crença).
LIBERDADE, DIREITO INALIENÁVEL
Um historiador americano do Século XIX, George Bancroft, disse um dia: “A ascensão de um povo que chamam de quaker é um dos eventos memoráveis da história do homem. Ele marca o momento em que a liberdade intelectual foi reivindicada incondicionalmente pelo povo como um direito inato inalienável”. A liberdade é um dos estribos da fé quaker, a partir da qual se desenvolve o seu programa de vida e a sua praxis. Os quakers concebem a vida como intrinsecamente “sacramental” (não os Sacramentos pontuais ministrados externamente, por sacerdotes e em ocasiões e cerimónias próprias) e defendem que todas as pessoas têm valor.
A religião não é apenas uma cerimónia de Domingo, antes é inseparável da vida quotidiana, permanente. Mas não se entenda que os quakers vivam uniformemente a sua fé, em bloco homogéneo e na mesma intensidade. Há liberdade, dissemos, também na procura de alternativas e soluções, cada um responde à vontade de Deus da forma como a sua vida lhe ensina, na sua demanda espiritual. Os quakers não vivem numa conformidade rígida; na verdade o individualismo existe entre os Amigos. Não pretendem ser um grupo de santos, mas dão ênfase à responsabilidade e à acção. Algumas das acções têm incluído esforços no campo da resolução de conflitos e no melhor tratamento dos pobres, desfavorecidos e aflitos, tanto na guerra como na paz, além da luta pela melhoria das condições sociais dos seres humanos. Por exemplo, esta vertente explica a adesão que conhecem em países pobres de África, dada a enfoque que conferem às soluções, mais do que aos problemas.
Assim foi também na fundação, na década de 1650, na sua oposição às leis injustas que os Estados e Governos impõem. Aqui reside outra peculiaridade quaker, que tantos sacrifícios e dor lhes criou: a sua primeira lealdade é a Deus, não ao Estado. A perseguição foi o prémio dessa indómita prioridade na lealdade a Deus e aos fundamentos da sua fé: nos primórdios da Sociedade dos Amigos, mais de quinze mil quakers foram presos por viverem e assumirem firmemente as suas crenças. Desses, mais de 450 morreriam em consequência das horríveis condições nas prisões, dos maus tratos e violência. Quatro foram mesmo executados em Boston, sob acusação de terem trazido ensinamentos sediciosos para a colónia.
Esta liberdade animou as primeiras adesões de fé, mas foi para além dos limites do possível para poder definir-se institucionalmente. Os primeiros quakers foram presos por muitos motivos, de facto, incluindo a sua recusa em pagar dízimos, fazer juramentos, servir no exército ou parecer desrespeitarem os “superiores”, a hierarquia social. O próprio Alexis de Tocqueville (autor de “Democracia na América”, 1835, e “O Antigo Regime e a Revolução”, 1856), seria informado por um quaker, em 1837, sobre as difíceis vicissitudes que sofreram nos seus primórdios “Os terríveis sofrimentos dos nossos antepassados e das nossas mães nas prisões do século XVII deram, a nós como povo, um interesse especial na administração das prisões e no tratamento do crime”, uma das “vocações” de activismo social a que mais afincadamente se entregaram os quakers.
Lembram-se de William Penn e da sua defesa, vitoriosa, da integridade do júri no processo que lhe moveram (com William Meade) por pregarem na rua a sua fé? O juiz declarou-os culpados, ao contrário do júri, temeroso. Mas Penn incitou-os a votarem em consciência. E assim seriam absolvidos, num processo que se tornou um precedente na história da Justiça na América. Assim pretendem ser os quakers, em consciência e liberdade….
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa