Cansado no Cabo Branco
Entre o deserto marroquino e o deserto mauritano estende-se uma vasta área, juridicamente neutra, que tem como únicas referências vários trilhos esburacados que partem em todas as direcções e carcaças de automóveis esventrados a lembrar-nos que o terreno em redor está minado. Não podia ser mais deprimente, a paisagem.
«– Há uns anos – comentava Senega – dois suíços enganaram-se e seguiram pela antiga estrada espanhola, a única que tem restos de asfalto mas que não leva agora a lado algum. Quando se inteiraram do erro, deram meia volta. Só que por azar uma das rodas tocou numa mina e… pum!».
Algumas centenas de metros adiante estavam estacionadas carrinhas prontas a transportar para Nouadhibou os estrangeiros que ali chegavam sem transporte próprio, a troco de grossa maquia, como é óbvio. É fundamental conhecer bem o caminho nesta terra de ninguém, e, regra sagrada, nunca sair dos trilhos.
O banditismo uniformizado, característica tão intrinsecamente mauritana, começava logo na fronteira. De modo claramente ostensivo, um dos guardas mandou aguardar um carro de matrícula francesa que se preparava para avançar, para dar prioridade ao nosso táxi colectivo, apesar de termos chegado depois. Entretanto, o colega do posto entretinha-se a fazer tiro ao alvo com uma espingarda de pressão. O alvo era um dos raros pássaros que se aventuravam em tão desolada paisagem. Ali perto, dois compatriotas seus recém-chegados de Marrocos prostravam-se por terra para fazerem a sua oração, embora com uma significativa variante: em vez de encararem Meca, como é devido, encaravam a bandeira do seu país.
Passava-se ali o contrário do que acontecia em Marrocos. Na Mauritânia, os veículos dos cidadãos nacionais só muito raramente eram controlados pelos agentes de autoridade. Em contrapartida, abundavam, em quantidade e diversidade, os estratagemas para tentar sacar euros aos estrangeiros.
Por sorte, entrei no País acompanhado de mauritanos e, por isso, os trâmites burocráticos foram rápidos. Enquanto o polícia da imigração me carimbava o passaporte (no cartão pedem o “nom de jeune femme”), no interior de uma barraca de madeira a cair aos pedaços, um mauritano com quase dois metros, de turbante e óculos Rayban, tentava a todo o custo que trocasse ali mesmo os meus dirhams por ougyas, a um câmbio verdadeiramente vergonhoso.
“Welcome to Mauritania!” Bem-vindo ao faroeste!
Era manifesto o contentamento dos meus companheiros de viagem por estarem de regresso à sua terra. Contentamento traduzido na sua prontidão em parar uns breves minutos, aqui e acolá, para que pudesse fotografar e desfrutar a paisagem da «nossa bela Mauritânia», como eles diziam, e que nesses primeiros quilómetros em tudo era igual à da região que ainda há uns anos fora pomo de discórdia entre os dois países vizinhos.
Avistámos ao longe uma cáfila de camelos e logo os mauritanos chamaram-me a atenção para o facto de um dos machos estar a copular com uma das fêmeas, fazendo questão de que fotografasse o acontecimento. Senaga, para o efeito, parou a viatura. O cameleiro, ao ver-nos, saiu disparado da tenda, acenando furiosamente. Os meus comparsas voyeurs, porém, tranquilizaram-me:
«– Não lhe ligue e fotografe à vontade. Ele protesta, mas no fundo até gosta».
O certo é que o “taxista” Senaga não esperou que o cameleiro se aproximasse e retomou a marcha, a uns cem à hora, rumo a Nouadhibou.
Uns dez minutos depois cruzámo-nos com o comboio mais comprido do mundo – ao todo, três quilómetros de carruagens. Enquadrado naquela imensidão de areia dava a impressão de ser bastante mais curto. Trata-se de um comboio de mercadorias, com um único vagão para passageiros, que faz a ligação entre Nouadhibou e Zouérat, no Norte da Mauritânia, já bem perto da Argélia, onde existem importantes veios de minério de ferro. Na viagem rumo ao deserto os vagões vão sempre vazios, mas quando regressam à costa vêm a abarrotar de minério. Para muitos dos visitantes esta é uma viagem a fazer sempre que se vai à Mauritânia, se bem que o resultado seja pouco enriquecedor: a paisagem é monótona, a velocidade lenta (não mais de trinta quilómetros por hora) e o pó imenso. O verdadeiro e, para muitos, único motivo de interesse são as pessoas que ali encontramos e as histórias que têm para nos contar.
Durante essa nossa viagem os mauritanos passaram o tempo a falar de carros. Marcas, peças, tudo ligado com a mecânica.
O posto de polícia do Paralelo 55 indicava o exacto número de quilómetros de extensão da estreita península que desemboca na cidade de Nouadhibou, centro populacional que teve a sua origem no comércio que os portugueses ali faziam desde meados do século XV, e é hoje a capital económica da Mauritânia. Trata-se do famoso Cabo Branco, atingindo pela primeira vez por Nuno Tristão, em 1441. A esse propósito, escreve João de Barros que “mestrada e aparelhada, a caravela seguiu a costa até chegar a um cabo que por a semelhança dele lhe pôs nome Branco”.
O deserto continuava a não dar sinais de acabar; e não havia ainda qualquer vegetação – nada, senão areia branca a reluzir.
Joaquim Magalhães de Castro