Minas na Baía de Cintra
Ao longo de todo o Saara Ocidental, mas com preponderância na ainda mais inóspita nação mauritana, assistia-se a uma inesperada solidariedade entre estrangeiros que frequentemente ultrapassava o quanto baste para se tornar numa amizade duradoira. Era comum avistarem-se auto-caravanas e veículos todo-o-terreno que percorriam quilómetros em conjunto. Faziam-no não tanto por uma questão de segurança, mas por precaução, pois a necessidade de apoio técnico podia ser uma realidade a qualquer momento.
Acercara-se entretanto do furgão de Luca um outro estrangeiro, por sinal seu compatriota. Vegetariano convicto, Salvatore percorria o mundo de moto seis meses por ano e trabalhava em Itália os outros seis.
«– Devo ser dos poucos italianos que dispensam o “espresso” diário», dizia.
As minas, para as quais nos alertavam as tais placas ferrugentas espetadas na areia, são o resultado de um centenar conflito, com particular expressão em meados dos anos 70 do século passado, quando Marrocos e Mauritânia disputavam, a ferro e fogo, a posse da pátria sarauí. Ficariam para sempre minados incontáveis areais imaculadamente brancos com nomes portugueses, como as já referenciadas Baía de Cintra (provavelmente uma evocação a Gonçalo de Sintra, navegador dos primórdios do reconhecimento da costa africana), Porto Rico, Cabo Barbas e Baía de São Cipriano. Mas houve quem não resistisse aos seus encantos. E aí ficasse, para sempre, vitimado por uma explosão.
«– Habitantes locais, mas também estrangeiros, embora os acidentes nunca tenham sido noticiados», informava Luca, com ar sério. O italiano lembrava, a título de exemplo, o caso de um médico de aldeia que frequentemente arriscava a vida porque os pescadores, «isolados do mundo», precisavam dos seus serviços. «– Um dia, a roda dianteira da sua motorizada passou pelo sítio errado, e… ali ficou!».
O relato deste episódio trouxe-me à memória as palavras de Rafael, o motociclista brasileiro, entusiasmado com a memória de uma noite dormida no deserto: «– Saí da estrada, andei umas boas centenas de metros e montei a barraca. Foi a experiência mais incrível de toda minha vida». É certo que o fizera umas dezenas de quilómetros a norte dali, mas, mesmo assim, aventurar-se fora de trilhos habitualmente palmilhados era sempre uma roleta-russa.
Interditado o Saara a leste, em território argelino, os europeus – na sua esmagadora maioria, franceses – passaram a frequentar a Mauritânia. Partir com veículo próprio e perder-se na imensidão do nada continua a ser o motivo impulsionador da viagem. Além das minas, o deserto tinha agora um outro perigo, algo mais visível.
«– Há campos de treinos da Al-Qaeda em toda esta área», lembrava Luca, apontando para uma secção do mapa. Tanizrufut é uma região que se estende pelo sul da Argélia e norte da Mauritânia e do Mali. Uma região que Luca conhecia bem.
«– Tenho um amigo em Tombuctu que me falou da presença de certos estrangeiros que se vê perfeitamente não estarem ali para fazer turismo».
Tratava-se de agentes da CIA que, nesse imenso espaço vazio, mas com variações na sua orografia, procuravam aquartelamentos inimigos como quem procurava uma agulha num monte de areia.
Com frequência deparávamos com sinalética interditando a caça, mas que, na opinião de Salama, de nada valia, pois, como dizia ele, «quem é que vai controlar a presença de caçadores furtivos?». Dakma é zona de passagem de gazelas, em sério perigo de extinção.
«– Se fosse de manhã cedo víamo-las por aí», dizia Senaga.
Corbero, perto do mar, outro nome com sonoridade familiar. A única presença humana ao longo do trajecto, além da ocasional viatura que connosco se cruzava, foi a de um intrépido ciclista, de cinquenta e muitos anos, que vimos sentado a consultar o mapa junto de uma rocha na berma da estrada: um mais que merecido descanso de guerreiro!
Entrámos depois numa paisagem lunar, com altos e baixos, que pôs fim à monotonia. E assim chegámos a Gurgarat, ou Fort Maroc, a odiada fronteira marroquina do Saara Ocidental.
O restaurante Foca Monja, assim chamado em homenagem aos mamíferos que sobrevivem nesta costa, era o único sinal de sanidade num local que tresandava a dificuldades e encrencas.
Junto às instalações fronteiriças, aglomeravam-se brancos e negros que, de pé, aguardavam ao sol junto a umas divisórias de metal, virados para uma pequena janela onde entravam os passaportes que deviam ser carimbados. Depois, havia que aguardar uma eternidade até que nos chamassem. No interior, três agentes à paisana com caras longas e obtusas iam chamando as pessoas. Um deles, de casaco de couro coçado, era um verdadeiro sósia do Al Pacino.
«– Da última vez que cá estivemos fazia muito mais calor e obrigaram-nos a esperar umas três horas», dizia uma francesa que viajava em sentido contrário.
O controlo das viaturas era, por norma, bastante minucioso. No lado oposto, descarregavam-se caixotes de madeira de uma camioneta, um a um. E lá estavam, os cães farejadores, prontos a encontrar algum tipo de tráfico. E que nem se pensasse tirar fotografias.
Reencontrei ali o Salvatore e um ciclista japonês que tinha estampado no rosto o sofrimento de quem atravessara todo um deserto a pedalar. É obra. Três franceses, que mais pareciam gémeos, optaram por fazer a viagem de lambreta, o que também é digno de registo.
Notava-se que os funcionários alfandegários sentiam um enorme prazer em deixar-nos ali, a tostar ao sol. Era a fórmula encontrada para descarregar as suas frustrações. Podia ler-lhes os pensamentos: vocês a passear e nós aqui desterrados no meio do nada, a carimbar passaportes.
Tão-pouco se poderia descrever como amistoso o olhar dos guardas que vigiavam a passagem para a terra de ninguém, entre as duas torres de controlo que faziam lembrar um castelo. Percebi então porque razão chamam a essa fronteira Fort Maroc.
Joaquim Magalhães de Castro