Costa da Memória

O Castelo do Desnarigado

Concluída a visita ao centro histórico, parti à descoberta do monte Hacho, na parte mais elevada da península. Sobressai aí uma fortaleza que, na época, albergava o contingente militar espanhol mobilizado no enclave. A encosta é íngreme e está repleta de pedaços da muralha portuguesa que rodeia toda a península, sobrevoada por gaivotas solitárias. A topografia acentua-se radicalmente desde a praia da Ribeira, que tem a sua origem na Muralha Real e acompanha toda a baixa da cidade. A toponímia traduz isso mesmo. Há a Ponta do Queimadeiro e a Peña de la Muerte, um distintivo rochedo, bem ao largo, que em tempos certamente constituiu séria ameaça à navegação.

«– Pareces primo do Luís Figo. Se fosses, de verdad, sequestrávamos-te». A jocosa observação, de muito mau gosto, por sinal, saiu direitinha da boca de um dos moradores do lugarejo que antecede o Forte das Palmeiras, hoje em ruínas.

Percorri o caminho, ladeado de cactos e romãzeiras, contornando gradualmente a falésia até avistar o Castelo do Desnarigado, assim designado devido à presença naquelas águas, no longínquo século XVI, de um temido pirata com quem tiveram de se haver os portugueses. A imponente fortificação, cujas fundações remontam ao século X, foi utilizada por estes para se protegerem dos corsários aquartelados em Tetuão, Argel e Salé. Foi para salvaguardar a entrada do Tejo das suas incursões que se ergueram os fortins do Estoril e de Caxias, ficando desde então imortalizada a célebre frase “anda mouro na costa”.

Nessa minha deambulação deparei com um ceuti de origem marroquina que pesquisava a costa em busca de plantas medicinais. Reprovou os grafites que conspurcavam o pouco que restava da muralha e aconselhou-me a visitar o castelo, «aberto apenas aos fins-de-semana e iluminado à noite», tendo ainda o cuidado de me informar acerca dos militares aí destacados.

Nas diversas salas desse “Castillo del Desnarigado” feito museu predominavam as memórias da Guerra Civil espanhola, com especial destaque para a parafernália das forças fiéis ao generalíssimo Franco, “os regulares e os da Legião”, sem esquecer as aguerridas tribos berberes. Vi ali de tudo um pouco: carroças para transporte de mantimentos, selas e apetrechos para evacuação de feridos no dorso de burros, material de engenharia, uniformes, retratos do ditador espanhol e uma placa com o seu nome retirada de uma rua da cidade, uma capela dedicada a São Tiago, a fotografia do rei Juan Carlos (do tempo em que integrava a Legião), todo o tipo de armamento ligeiro, autóctone ou europeu, e canhões de várias proveniências, inclusive uma columbina portuguesa do século XVI, com lugar de destaque na sala principal.

A paragem seguinte foi junto ao farol que substituiu o tradicional hacho – o facho de luz com o qual se alertava a navegação de outrora. Equipas de cantoneiros bem apetrechadas mantinham limpas e desimpedidas as bermas e a estrada até à Ermida de Santo António. Embora não seja referenciada como tal, só pode ser do tempo dos portugueses. Junto a esse pequeno templo amarelo e branco vêem-se ainda restos da muralha original e pedaços da memória da guerra, sendo as pegadas do ditador espanhol motivo da romaria para os mais saudosistas. Mesmo ao lado, um miradouro oferece a melhor vista possível para o continente europeu. A toponímia, essa, continua a ser bem elucidativa: Ponta do Atravessado, Ponta de Santa Catarina, Ponta das Covas…

Num rochedo mais em baixo pareceu-me avistar uma equipa de alpinistas treinando nas paredes de uma antiga pousada erguida nas fundações de mais um troço da muralha portuguesa. Afinal, era apenas uma sessão de formação para futuros trabalhadores da construção civil. Neste caso, especialistas na recuperação de edifícios históricos, que no futuro trabalhariam, não em andaimes, mas sim pendurados nas paredes, como verdadeiros escaladores.

Vem de longe a ocupação humana nesta fascinante cidade. Há vestígios do período pré-histórico numa cave junto à fronteira com Marrocos e, em plena baixa, do período fenício, “o povo das velas púrpuras”. Das guerras púnicas sairiam vitoriosos os romanos que aqui permaneceram muito tempo, tendo feito de Ceuta um dos seus mais importantes bastiões no Norte de África. Houve um período pós-Constantino e um outro bizantino, dos imperadores Justiniano e Teodósio. Chamava-se Julião o último dos seus governadores cristãos. Sobre ele escreveu um dia um desses românticos a roçar o saudosismo: «Ceuta, antiga terra do conde Julião, voltava a ter a sua igreja de Cristo, voltava a ser ocupada pelos seus cristãos». Mas Julião, para poupar Ceuta, mais não fez do que permitir que os árabes merínidas utilizassem a cidade como catapulta para atingir Tarifa, em 710, e, dali, subir até às Astúrias.

A recente descoberta de uma basílica tardio-romana, posteriormente transformada em necrópole, serve de argumento a quem insiste que a cristandade é aqui muito antiga, “400 anos antes do nascimento do profeta Maomé”, graças à liberdade de culto outorgado pelo Édito de Milão de 313.

Joaquim Magalhães de Castro

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