Ecos de revolta
Layoune, ou melhor El Ayoun – capital de um país ainda sem estatuto definido – seria ocupada em Dezembro de 1975, na sequência de uma manifestação ocorrida dois meses antes, e que reunira doze mil sarauís demonstrando o seu apoio à Frente Polisário, fundada a 10 de Maio de 1973.
Soubera, pelos jornais, que Layoune acabara de acolher a primeira edição do Festival Internacional de Magia, evento patrocinado pelo “Office Chérifien des Phosphates”, pela “Agence du Sud” e pela companhia estatal de electricidade. Mais uma tentativa de dar uma aparência normal a uma cidade toda ela artificial, já que muitos dos habitantes são colonos marroquinos ali destacados desde o plano de paz delineado na ONU, em 1988, entre Marrocos e a Polisário. Esse plano previa a realização de um referendo que fora sucessivamente adiado (doze vezes, para sermos exactos), devido à migração dessas pessoas com o intuito de as transformar em votantes apoiantes da integração do Saara Ocidental no território marroquino.
Prosseguimos sem fazer qualquer paragem na cidade. Nos arredores, a gigantesca fábrica de fosfatos constituía o único foco de luz na noite escura. Terminava aí um ramal de ferrovia com origem no deserto, mais exactamente, em Boukraa, onde se situam os jazigos desses preciosos adubos analisados pelo geólogo espanhol Manuel Alia Medina, entre 1949 e 1959. A sua descoberta revelou um dos mais ricos depósitos de fosfato do mundo, com um grau de pureza entre os setenta e os oitenta por cento, e cujas reservas estavam estimadas em mais de dez milhões de toneladas. Em 1975, as exportações atingiram os dois milhões e meio de toneladas, fazendo do Saara Ocidental o sexto maior exportador a nível mundial. Motivo suficiente para se tornar, de um momento para o outro, num local muito apetecível. Duplamente apetecível, se lhe acrescentarmos um banco de pesca riquíssimo.
«– As reservas dos marroquinos estão esgotadas. E agora eles vêm à nossa costa tirar tudo o que podem», comentava Salama.
A juntar ao fosfato e à pesca, há ainda o petróleo, o gás butano e o urânio, outras das riquezas da região. Numa outra estação de serviço, Salama, após pagar-me o tagine – «insisto, meu amigo» – pediu-me que não revelasse a ninguém o teor da nossa conversa. «– Diga apenas que conversámos acerca de assuntos históricos».
Acto contínuo, em absoluta contradição com os cuidados de Salama, o mais velho dos seus companheiros, envolto num turbante, puxando fumaça de um pequeno cachimbo de metal, o shisha de bolso, proferiu, em voz alta, para que todos o ouvissem:
«– Não somos marroquinos! E temos muito orgulho nisso».
Uma hora mais tarde, Salama, sempre comedido nas palavras, e porque nos aproximávamos da cidade de Bojador, o meu destino final, deu-me o seu número de telefone, perguntando-me:
«– Promete que me chama quando estiver em Dakhla? Temos ainda muitas coisas para conversar».
Chegámos a Bojador às duas e meia da madrugada. O único hotel aberto àquela hora, o El Kods, era bastante caro e, por isso, não tive senão a alternativa de me dirigir ao posto da polícia. Talvez ali me soubessem indicar um local mais em conta. O agente de serviço, todo solícito, pôs de imediato um oleado amarelo sobre os ombros, e, dessa forma, protegido do ar gélido do deserto, pediu-me que o seguisse pelas ruas ermas até chegarmos a uma pequena residencial. Acordou o proprietário com um potente grito, e este respondeu-lhe com um berro ainda mais sonoro, informando-o de que não tinha quartos disponíveis, já que estavam «ocupados pelos prospectores de petróleo». Pelos vistos, técnicos espanhóis. Facto curioso, pois, por decisão das Nações Unidas, Marrocos estava proibido de explorar quaisquer jazidas de petróleo existentes no Saara Ocidental.
Mas o simpático agente não se deu por vencido. Desceu uns quantos quarteirões e, subitamente, parou diante de um albergue sem qualquer sinal que o identificasse. A porta, no entanto, estava entreaberta. Entrámos. Deparámos, primeiro, com um quarto escuro e, logo depois, com um homem embrulhado num cobertor em frente ao televisor assistindo a um filme de terror. Era o dono da pensão, um sarauí bilingue (falava perfeitamente Espanhol) que logo me deixou aos cuidados do seu empregado. O homem, bastante mais novo, apressou-se a indicar-me, no andar de cima, uma enxovia à qual chamava quarto, sem água canalizada e com os lençóis sebentos. E foi ali que dormi, bem protegido dentro do meu saco cama.
Bem cedo pela manhã, decidi descer até à borda do mar. Afinal, estava num local mítico e fazia questão de ver o areal à altura do Bojador. Tinha de ser. Segui pela rua principal, ladeada por mercearias e um ou outro botequim, onde os mais madrugadores matavam o bicho com café aguado e pão com açúcar (os sarauís põem açúcar em tudo). Abundavam as casas em construção, certamente para receber mais alguns milhares de colonos marroquinos, e várias retroescavadoras rasgavam o asfalto da estrada preparando-a para receber as condutas de cimento das futuras canalizações. A uns cem metros da praia, do meu lado esquerdo, deparei com o parque de campismo da cidade. Estava vazio. À entrada, dardejando ao vento, bandeiras de vários países ocidentais, entre os quais a portuguesa, mas virada ao contrário. Vazio estava também o areal, com pequenos pássaros saltitando onde as ondas vinham morrer.
Joaquim Magalhães de Castro