Costa da Memória

Porto Cansado e mais além

Já então percebera que jamais iria ver o “meu Porto Cansado” à luz do dia. Talvez, com um pouco de sorte, pudesse assistir ao entardecer perto da costa. Pensado e feito. Uns quilómetros depois, findaria o chão, assim, num repente, quase mar adentro, junto à aldeia piscatória de El Ouatia, assinalada nos mapas como Tan-Tan plage, talvez porque assim soe mais fino. Aí, o motorista, provavelmente porque fora admoestado pelos patrões, deu o primeiro sinal de civilidade, ao permitir que nos apeássemos do autocarro durante uns minutos para usufruir as vistas de tão aprazível local, enquanto, lá ao fundo, na linha que separa o mar do firmamento, uma enorme bola de fogo desaparecia lentamente. Ufa! Estava a ver que me iam estragar a despedida do astro-rei. E que bom foi sentir a forte maresia, rica em iodo, como na minha adorada costa vareira.

Também ali se derramavam os destroços de um barco, cortado em dois, junto a umas falésias; também ali nos sujeitámos a mais um controlo policial, desta feita bastante rápido.

Instalado o crepúsculo, iniciaria a fímbria marítima o seu jogo do gato e do rato. Por breves instantes, as arribas permitiam-nos avistar o troante Atlântico; momentos depois, ocultavam-no. Consoante o traçado viário, aproximávamo-nos ou afastávamo-nos dele, e, raras vezes, deparávamos com uma reentrância – o tal “surgidouro”, tantas vezes mencionado nas crónicas dos mareantes.

Barracas de pescadores, fabricadas com os mais diversos materiais, e uma ou outra auto-caravana estacionada junto aos penhascos, eis os únicos sinais de presença humana. Invejava a liberdade desses excursionistas com transporte próprio, que podiam parar quando e onde quisessem.

Até chegarmos – já de noite – a Lemsid, ou seja, Porto Cansado, ou Mar Pequeno, registei na minha contabilística mental quatro reentrâncias de mar e de rios, que, na altura, estavam secos. No mapa, representavam-nas a tracejado e sem qualquer legenda identificativa. Em Lemsid, o fundeadouro era bastante alargado e dera origem a pequenos lagos interiores. Imaginava-os apinhados de batéis aferrados. Mas não, em vez de barcos, nas suas margens havia auto-caravanas e gente acampada. Seria decerto um imenso prazer deixar-se ficar naquelas redondezas uns quantos dias.

Aquela era com certeza a Terra Alta de que se falava quando se fazia referência ao Cabo Não. “Quem vai ao cabo Não, volta ou não”, dizia um popular adágio da época. Foi, provavelmente, num local assim que o navegador Diogo Gomes fez a seguinte afirmação: «o mar da areia é a trinta e sete dias de distância e separa os brancos dos negros».

Apesar do adiantado da hora, fizemos uma breve paragem em Tarfaya, para recolher mais passageiros. Um deles chamava-se Salama e era sarauí. Começou por comunicar comigo em Francês, como é habitual em Marrocos, porém, quando se deu conta de que era português e falava Castelhano, replicou-me nesse idioma. Redobraria de imediato a sua curiosidade a meu respeito, assim como a dos companheiros de jornada, que até então se tinham mantido calados. Todos passaram a falar com grande à vontade, como se de repente tivessem encontrado um aliado, referindo-se aos anos de trabalho despendidos em Fuenteventura e em Las Palmas, com evidente nostalgia e até, pode dizer-se, algum carinho.

Tarfaya, situada à mesma latitude das ilhas Canárias, foi ponto de abastecimento das aeronaves da pioneira companhia de aviação francesa Aeropostale (um dos seus pilotos, Antoine de Saint-Exupéry, escreveu ali o livro Cruzeiro do Sul) e serviu como moeda de troca para a consolidação da autoridade colonial espanhola na região entre Saguia el-Hmara e Rio do Ouro, conseguida graças a um acordo assinado em Sintra, em 1958, passando a cidade a constituir marco fronteiriço com o então Saara Espanhol. Se servira, na altura, para refrear as aspirações marroquinas, muito antes disso, há seis séculos, para sermos exactos, Tarfaya fora escala obrigatória nas expedições portuguesas.

Ao largo do Cabo Juby, numa ilhota rochosa, ergue-se uma ruína – a Casa Mar – que os habitantes consideram ser “uma antiga prisão portuguesa”, embora os guias de viagem atribuam a sua origem à iniciativa do mercador escocês Donald Mackenzie, que demandou Tarfaya em 1879.

«– Quando era miúdo, costumava nadar até à Casa Mar, que durante a preia-mar é alcançável a pé. Esse era o nosso local de brincadeira favorito», recordava Salama.

Também em Tarfaya há navios naufragados. O mais visível, o ferribote espanhol Assalama, encalhou a poucos metros da costa, a 30 de Abril de 2008, tendo sido resgatados, pelos bombeiros e os pescadores locais, todos os elementos da tripulação, assim como os cento e treze passageiros.

Os meus novos companheiros de viagem não se esqueceram de assinalar a passagem da fronteira com o Saara Ocidental, precisamente em Tah, uma das inúmeras povoações-fantasmas da região, sangradas dos seus habitantes após a ocupação marroquina de 1975. Não iria para muito longe toda aquela gente.

Se traçarmos uma linha recta a leste (aquela que aparece a tracejado no mapa-mundo, delimitando as fronteiras do “quase país”), deparamos com Tinduf, já em território argelino. Aí se situa grande parte dos campos de refugiados sarauís, com milhares de homens, mulheres e crianças que se recusam a regressar enquanto Marrocos não abdicar das terras que ocupou pela força das armas. Entretanto, recebem ajuda humanitária vinda da Europa e de médicos destacados de Cuba. As temperaturas chegam a atingir os cinquenta graus no Verão e podem descer abaixo de zero no Inverno. Tempestades do deserto, os temíveis siroccos, varrem literalmente, e sem aviso prévio, o amontoado de tendas, e quando chove são as enxurradas que levam tudo à frente.

Também a tracejado, desta feita direcção Norte-Sul, é representado o muro erguido no deserto pelos marroquinos, em 1981, para separar o território controlado pela Polisário, e, na sua circunscrição, Smara, a única cidade do Saara Ocidental fundada após o período colonial espanhol.

Joaquim Magalhães de Castro

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