Véus, jalabas e a memória de Al Idrisi
Ao longo do passeio marítimo, na zona ribeirinha atlântica, junto à marina e aos cais aonde chegam e de onde partem as embarcações (há quem se desloque a Ceuta de helicóptero), são bem visíveis secções inteiras da antiga muralha, ainda com as seteiras, das quais destaco a Porta de Santa Maria, onde se ergue a estátua do célebre cartógrafo árabe Al-Idrisi, autor dos mapas que fizeram sonhar Henrique e os seus nautas.
Têm muito mais razão de queixa os árabes no que se refere à insuficiente informação histórica, pois nem sequer os vestígios das muralhas merínidas, mandadas erguer pelos sultões de 1307 a 1310, merecem qualquer destaque no mapa da cidade, embora tenham funcionado como cidadela e albergue, refúgio de forasteiros e tropas, obrigados a passar a noite fora do casco medieval. Apenas são referenciados os banhos árabes, descobertos na sequência da execução de obras públicas, há já algumas décadas. O mundo islâmico atribuía a esse tipo de instalações, além das óbvias virtudes higiénicas e curativas, um possível significado religioso, pois ali o crente limpava o corpo antes de se entregar à oração num estado de pureza total.
Ainda hoje o Fosso de São Filipe separa a “cidade cristã” da congénere muçulmana, a leste, para onde a malha urbana se foi estendendo, até à fronteira entre o enclave e Marrocos, marco que remonta ao século XIX e está assinalado por uma série de torres neo-medievais. Ligam-nas diversos trilhos utilizados pelos munícipes de Ceuta, bastante dados às actividades ao ar livre, sejam as caminhadas ou a simples observação de aves. Durante a semana, enchem-se as ruas de Ceuta. Com residentes, mas também inúmeros forasteiros, sobretudo marroquinos.
Preparado para o primeiro dia de descoberta, saí à rua de manhã bem cedo e, num repente, véus e jalabas (túnicas masculinas) dominaram o cenário circundante. Reparei ainda nos inúmeros estabelecimentos comerciais, museus e ruas com nomes (alguns inscritos em placas de azulejos) que me soavam familiares, e, certamente, indicavam funções e valências de outrora. Ali era o Mercado Viejo, acolá o Mercado da Lana, mais adiante a Rua da Misericórdia ou a Rua Central.
O marroquino que me saudou por diversas ocasiões com um «hola portu!» (como adivinhou ele a minha nacionalidade?), cedo revelou as suas reais intenções, ao mostrar-me um colar de ouro falso e uma pedra de haxixe.
«– Te gustan las chicas?», atirou o maduro.
Mas isso é pergunta que se faça? Constava que muitas das marroquinas presentes em Ceuta ou eram mulheres-a-dias ou andavam na prostituição, facto que explicava tão súbita interpelação.
Absorto nas surpresas que a cidade parecia ter guardado para mim, pouco faltou para que pedisse uma sandes de presunto serrano ao balcão de mármore de um dos muitos tascos muçulmanos da baixa da cidade, onde o cardápio é mais chá de menta (que ali se denomina “chá verde”) e sopa de mariscos, quando muito, pois tudo deve ser obrigatoriamente “halal”, já que, ao dito chá, servem-no sempre açucarado. Aliás, havia por ali um gosto muito acentuado pelo doce e até nos quiosques de jornais e revistas se vendiam “golosinas”, o mesmo é dizer, guloseimas.
Outra das características de Ceuta era a abundância de mulheres empurrando carrinhos de bebé, não se perspectivando, portanto, nos tempos mais próximos, um precoce envelhecimento da população.
Já que falo em chá verde… Sinto de imediato a sua falta quando inicio nova viagem! Estive quase para entrar num restaurante chinês só para emborcar umas quantas taças da deliciosa bebida dos deuses. Também em Ceuta se instalaram, com restaurantes e lojas, os mais laboriosos dos asiáticos, adaptados até à afamada “siesta” castelhana.
Contenção de despesas obrigar-me-ia a buscar novo alojamento para o segundo dia de estada, dessa vez no Recinto, a zona alta da cidade, maioritariamente habitada por muçulmanos, onde por 15 euros tive direito a quarto com terraço e vista simultânea para o Atlântico e o Mediterrâneo, e ainda, em jeito de brinde, o canto do imã no minarete, logo pela madrugada. Era já uma aproximação ao mundo que me esperava nos dias vindouros.
Nessa pensão familiar, pomposamente designada “CH Gutierrez El Cateto”, mesmo ao lado de um bunker do tempo da Guerra Civil, nada de luxos asiáticos, do género garrafas de termos com água quente ou chá e café à discrição. Raramente se avistavam os proprietários, talvez devido à escassez de hóspedes. Na realidade, a maioria dos viajantes entrava em Marrocos pelo porto de Tânger, e os que o faziam por Ceuta apenas pernoitavam uma única vez. A propósito, questionei os meus botões: como é possível passar por Ceuta sem ficar dois ou três dias?
Joaquim Magalhães de Castro