Vigiados pelo Anti-Atlas
A viagem de Agadir a Bojador teve de ser muito bem planeada, pois havia duas companhias a assegurarem o trajecto. Uma delas, a já conhecida CTM (sucursal da Eurolines europeia), a outra, a Supratours, mais não era do que um extensão rodoviária da OCNF, caminho-de-ferro marroquino. Reservei aí o bilhete, ainda em Essaoiura, para as sete da manhã e a troco de 250 dirhams, ou seja, 25 euros, mais cêntimo menos cêntimo. Se fosse até Daklha precisaria de desembolsar 340. Apesar de a gasolina ser mais barata no sul de Marrocos (chegava a ficar 50 por cento) as viagens acabavam por encarecer devido à escassez de viajantes. As camionetas, por norma, andavam praticamente vazias, à excepção da altura das festas quando enchiam com passageiros que visitavam familiares nas cidades do Sul. Estamos a falar de, no mínimo, dezasseis horas de viagem, uma parte significativa durante a noite.
Depois de um olhar minucioso ao mapa, apercebi-me da conveniência de apanhar a camioneta da manhã para assim poder presenciar à luz do dia a zona costeira onde se situa Porto Cansado, ou seja, Mar Pequeno, referência recorrente dos nossos navegadores.
Só que a jornada atrasou, e logo pela manhã. Foram várias as simulações de arranque no terminal, talvez com o intuito de atrair passageiros. Debalde, pois não apareceram, e o expresso viu-se obrigado a encetar viagem com menos de uma dezena de passageiros, muito lentamente, até à cidade satélite de Inezgane. Deixada para trás a “estância balnear dos europeus” (assim definem Agadir certos marroquinos) regressámos ao Marrocos do rebuliço dos mercados. O motorista estacionou junto à sucursal da Supratours, e, sem dizer uma palavra, saiu para tomar o pequeno-almoço com o colega. E nós ali ficámos, enquanto alguns homens carregavam caixas e colchões para o porão do veículo.
Não suporto atitudes do género “quero, posso e mando”, e por isso protestei. Defendeu-se o motorista, dizendo que o compasso de espera constava do horário. Claro que não era verdade. Tudo não passava de um arranjo-negócio pessoal entre ele e o dono do café.
Quem disse que a Supratours cumpria horários escrupulosamente?
Partimos de Inezgane, uma vez mais à velocidade mínima, e com filas de viaturas à nossa frente. Os telhados das casas, lá fora, pareciam inspirados nos tectos ondulados dos templos chineses.
Depois de passarmos o rio Massa, deparámos com uma placa de trânsito indicando uma povoação com esse mesmo nome que se avistava ao longe, à nossa direita. Está historicamente comprovado que os portugueses ali estiveram, décadas antes de edificarem o forte de Santa Cruz. Tal decisão deveu-se ao facto dos castelhanos se terem estabelecido a sul, nas Canárias, já no fim do século XV, procurando alcançar o continente mesmo em frente. Alonso de Lugo, governador de Tenerife, logrou obter, em 1499, “acordos de paz e obediência à coroa de Castela com os mouros da costa”. No ano seguinte, a sua ousadia permitir-lhe-ia fundar uma feitora na margem direita do rio Acaça, à qual chamou Santa Cruz do Mar Pequeno. Não contente com isso, quis instalar-se em Meça, onde os portugueses tinham, desde 1497, uma feitoria (o forte nunca passou de um projecto), tornando as populações locais suas vassalas. Impedido dos seus intentos, o espanhol não desanimou e continuou para norte, apossando-se daquela que era na altura a povoação de Agadir – que significa “lugar fortificado”, em idioma berbere – com a ajuda da tribo dos Cacimas. Curta foi a ocupação porque logo os habitantes de Meça, incitados pelos portugueses, expulsaram os espanhóis e seus aliados.
Valentim Fernandes, no seu “Manuscrito”, nota que em Meça havia “grande trato de mercadorias de bárbaros e alarves, aqui estão genoveses mercando, por este rio abaixo vem muito ouro, cera, courame de vacas e bodes, lácar e anil”.
Damião de Góis, por sua vez, dá-nos conta que ali perto, em Teracuco, habitavam muitos mercadores cristãos, entre os quais genoveses e castelhanos, “que negociavam coisas defesas”, ou seja, munições, utilizadas posteriormente para atacar Santa Cruz. Facto que levou o capitão dessa vila, D. Francisco de Castro, a prender todos os seus moradores, “incluindo genoveses, castelhanos e outros cristãos”, arrasando de seguida a povoação.
Meça acabaria por ser a mais meridional das nossas fortificações na costa marroquina. Pelo menos, das que há registo. Pois, ao longo dessa minha viagem a sul, constataria que muitas outras ruínas são atribuídas à passagem dos nossos pioneiros navegantes.
As montanhas pouco elevadas do Anti-Atlas, que se avistavam a leste, anunciavam uma dramática mudança no padrão do deserto, até então ocre e com eucaliptos pintados de branco a ladearem a estrada, o que me levaria a cogitar o seguinte pensamento: “Por que razão se plantam eucaliptos em terra seca? Para a ressequir ainda mais, será?”
Em breve, desapareceria da monótona paisagem a rara flora, parecendo que por todo o lado fora espalhado napalm, tal era a desolação.
Joaquim Magalhães de Castro