Costa da Memória

Gaivotas de Mogador

A minha passagem por Mogador levou-me à seguinte conclusão: fazia-se pouco em prol da divulgação de Portugal em Marrocos. Muito pouco. Desgraçadamente, continuávamos assim. Enquanto brincávamos aos espectáculos, às exposições, aos torneios (sem qualquer desprimor pelas iniciativas tomadas, antes pelo contrário), perdíamos oportunidades soberanas (e em Marrocos, o terreno era todo nosso) de verdadeiramente divulgarmos o nosso país, a nossa cultura, o modo de ser da nossa gente, que tantas afinidades tem com a gente de lá.

Devidamente aproveitados, muitos dos locais e monumentos de que tenho falado poderiam ser pólos museológicos, centros culturais, sedes de associações luso-marroquinas; enfim, montras por excelência de Portugal para os marroquinos e para todos os outros que visitam Marrocos e assim passariam a ter vontade de nos visitar também. Mas, infelizmente, neste como noutros domínios, os nossos governantes continuavam a demonstrar uma estreiteza de espírito confrangedora, ficando-se sempre pelas miudezas. Pelos «secos e molhados», como diria Agostinho da Silva.

Após hora e meia numa camioneta com os vidros selados à espera de mais passageiros que justificassem a partida, foi quase obrigatório entabular conversa com o desconhecido sentado ao meu lado.

«– Essaouira é bom para passar os fins-de-semana, mas não para viver», confidenciava Chaibi, jovem licenciado em Engenharia Electrotécnica. «– Aqui não há nada para fazer. Além disso, falta-lhe indústria».

O local onde habitava, nos arredores de Agadir, trezentos quilómetros mais a sul, oferecia, segundo ele, maior qualidade de vida. Entusiasmado com o emprego já garantido, Chaibi não hesitara em comprar casa recorrendo ao crédito bancário. O pior é que os cem mil euros iniciais já iam em cento e cinquenta mil e Chaibi era muito novo – vinte e três anos apenas – para estar já tão profundamente endividado.

Fiquei a pensar no que me dissera o marroquino. Afinal, Mogador, destino tão apreciado pelos visitantes estrangeiros, para o comum dos marroquinos não era nada de especial.

Como variam as grandes obras da criação consoante a perspectiva de quem as vê!

Em Mogador, os estrangeiros não passavam de intrusos que palmilhavam as artérias da cidade, espiolhando os cantos à casa. Muitos deles insistiam nessa detestável postura de exigir a Europa nos locais exóticos por onde passavam. Refiro-me às prefabricadas comodidades para ricos, mas também às prefabricadas comodidades para os “freaks”, que em Mogador montaram o seu próprio circo. Refiro-me ao facto de os habitantes deixarem de fazer o que habitualmente fazem para ficarem todo o dia especados dentro das lojas à espera que o turista chegue e compre bugigangas inúteis; que o turista coma em restaurantes metafóricos que nem são carne nem peixe; que o turista fique alojado em casas adaptadas, mesmo que isso signifique perda de qualidade de vida para o proprietário e respectiva família. Refiro-me, enfim, aos que alteram o seu estilo de vida para atender os caprichos e as falsas necessidades do turista, contradizendo princípios com séculos de existência. Está certo que o turismo traz divisas, mas é preciso ver se compensa o desgaste que inevitavelmente provoca nas relações entre os locais, já para não falarmos da relação superficial, feita de muitos sorrisos e poucas verdades, estabelecida entre o nativo comerciante e o forasteiro comprador.

É mais natural que se adapte quem está de visita a determinado local do que quem aí vive há gerações. Infelizmente assim não é, desde os tempos do “Grand Tour” pela Europa continental idealizado e concretizado há mais de duzentos anos pelo “inventor” das hordas turísticas – o inefável Thomas Cook – que as coisas se passam desta forma.

Como agravante, havia ainda a ter em conta a praga das pizzarias inundando com luz branca as vielas recatadas. Com tanta coisa boa para comer no domínio do tradicional, quem, no seu perfeito juízo, pode estar ansioso por uma pizza? Para quê ir a Marrocos se não se está disposto a degustar o que ali se produz e tão delicioso é?

Como se não bastasse, os franceses, além de chamarem Syndicat d’initiative ao Posto de Turismo, Hôtel de Ville à Câmara Municipal, Hôtel de Police ao Posto de Polícia ou ainda desvirtuarem o conceito da Maison d’hôtes (não correspondia à nossa Casa de Hóspedes, mas sim a alojamento fino), acrescentaram à paisagem lojas de conveniência com produtos da Gália a preços inflacionados.

Os cafés com esplanadas de Essaouira eram europeus na sua essência, e europeus eram todos os que se sentavam à frente de ementas a setenta, oitenta, cem dirhams por cabeça, para um pequeno-almoço. Bem mais caro do que na Europa. E se eu considerava aquilo caro, o que dizer dos nascidos na terra… Resultado: guetos em génese.

Nos telhados, gatos e gaivotas continuavam reis e senhores. Ao menos isso. Os felinos, numa dimensão térrea; os pássaros, algo etéreos, utilizando os parapeitos para pequenos descansos entre os voos. Ambos seguiam o ritmo natural das coisas, desprezando as milhentas perversidades que nos complicam a vida e impedem de sermos felizes. Querem fotografar gaivotas em pleno voo com céu azul como pano de fundo? Fácil. Vão a Mogador. Nesse domínio, acontece ali o contrário de no resto do mundo. É praticamente impossível retratar o céu sem que uma ave se ponha no campo de visão.

«Esta é a minha casa. Só me falta agora encontrar uma mulher marroquina», ouvi dizer a um estrangeiro que caminhava à minha frente envergando uma T‐shirt publicitando a loja Gipsy Surf. Cada vez havia mais estrangeiros a pensar assim. E a mudar residência para latitudes atlânticas como aquela, nas imediações do Trópico de Capricórnio.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *