São Jorge, o vencedor
É um dos santos mais famosos da História da Igreja. Mais amados, venerados, invocados e referidos. Popular, particularmente na Idade Média, a sua veneração atingiu elevado apogeu naquela época, não mais se abandonando o seu culto. A sua popularidade foi sempre enorme, não apenas na Igreja Católica, mas em todas as formas de Cristianismo, além dos sincretismos afro-americanos e mesmo no Islão. Muito se tem discutido sobre a sua autenticidade histórica, mas a sua devoção universal e a sua dimensão cultural e histórica fazem deste santo uma das expressões de santidade mais invocadas. Em muitas nações, como a Inglaterra ou Brasil, importantes baluartes históricos do Cristianismo a sua memória é inquestionada e culturalmente muito importante.
Quem era afinal?
Jorge era oriundo da Ásia Menor, actual Turquia, mais propriamente da região da Capadócia, onde terá nascido entre 275 e 280, vindo a falecer dia 23 de Abril de 303, ainda muito jovem. Por isso o invocamos aqui n’O CLARIM, pois amanhã, sábado, é a sua Memória. A sua morte, na Bitínia, corresponde a mais um dos martírios de cristãos na época mais acesa e sangrenta das perseguições romanas, entre os séculos II e III. Reza a tradição que era um soldado romano no exército do imperador Diocleciano. Foi todavia martirizado às ordens deste soberano. É mesmo um dos santos militares da tradição cristã, sendo patrono de exércitos de vários países e dê ordens honoríficas e militares. É também um dos catorze santos auxiliares. Mau grado a sua morte por via do martírio, a sua fama de santidade rapidamente exalou pela Cristandade, logo na época de Constantino, o qual mandou mesmo erigir a igreja onde se guardam e veneram as suas relíquias, em Lod, Israel.
Hagiografia
Jorge, segundo a sua tradição hagiográfica, depois da morte de seu pai, Gerôncio, oficial do exército romano, mudou-se com sua mãe para Lydda, a actual Lod, em Israel, não longe de Tel Aviv. A mãe era cristã e tinha intenção de perseverar na sua fé, desejando vivamente transmiti-la ao filho. Assim o educou, assim se manteve Jorge toda a vida. Mesmo depois de entrar no serviço militar, quando tinha perto de 18 anos, não renegou nunca à condição de cristão. A moral e integridade inerente à sua fé tornaram-se importantes na carreira militar, dada a sua boa formação. O seu carisma permitiu-lhe ascender ao cargo de tribuno e a posição social importante. Foi por isso nomeado para a guarda pessoal do imperador Diocleciano, sendo destacado para Nicomédia, na Bitínia (actual Turquia). Este imperador, um dos mais cruéis nas perseguições ao Cristianismo, emitiu um édito em 303 pelo qual autorizava a perseguição de cristãos em qualquer parte do império romano – o imperador morreu em 305 mas o édito manteve-se. Jorge recebeu assim ordens de participar nas perseguições mas renunciou ao seu cumprimento, revelando que também era cristão. Logo Diocleciano ordenou que fosse torturado e renunciasse, mas Jorge aguentou. Que seja então executado, impôs o imperador. Por ser cidadão romano, foi decapitado, junto às muralhas de Nicomédia a 23 de Abril.
A tradição celebra ainda o facto de que a imperatriz Alexandra e uma sacerdotisa pagã se terem convertido na sequência do martírio do jovem militar. O cadáver de Jorge foi enviado para Dióspolis, actual Lod. A construção que ali foi feita por cristãos para guardar as relíquias tornou-se um centro de peregrinação e acabaria edificada por Constantino. É actualmente o centro do culto oriental a São Jorge. Vários relatos posteriores aumentaram a fama de santidade do lugar e dos restos do santo. A sua destruição pelos muçulmanos em 1010 aumentou a importância devocional de São Jorge, a qual motivou a sua reconstrução por parte dos cruzados mais tarde. Saladino destruiria novamente o templo, em 1191. Em 1872 seria reconstruída novamente, mantendo-se ainda hoje tal como esse restauro a deixou. A devoção todavia ultrapassou desde o século V a região do Médio Oriente, espalhando-se por todo o império e depois pela Cristandade.
Em 494 o Papa Gelásio canonizaria Jorge da Capadócia, mas deixando uma referência ambígua que ditaria o lastro de dúvidas em torno do santo até aos dias de hoje: “… Aquele cujos nomes são justamente referenciados mas cujos actos apenas são conhecidos por Deus”. As lendas seguiriam o lastro da ambiguidade e as histórias apócrifas fariam também o seu serviço à dúvida, definindo-se o santo como alguém “…cheio de extravagâncias e maravilhas para além de qualquer credibilidade”. Mas a devoção nunca esmoreceu.
Lenda do dragão
No século IX apareceu outra história popular, aquela que mais se colaria ao santo: a lenda de São Jorge como vencedor de um dragão que devorava jovens donzelas de uma cidade e se preparava para o fazer à mais importante do lugar e a última ainda viva, a princesa Sabra. O santo venceu a besta e resgatou a jovem princesa. A Legenda Dourada, edição hagiográfica medieval, reputada e inquestionada, plasmou a lenda e popularizou-a, consolidando-a junto da Cristandade. O dragão na versão ocidental fizera o seu ninho no manancial de água em frente da cidade por ela abastecida. Só sacrifícios humanos aplacavam a sanha do dragão, que só assim permitia o acesso à água. As variantes são muitas mas talvez seja assim que começaram as lendas de dragões e princesas, cavaleiros e o estigma demoníaco da besta. Agradecidos a São Jorge, aparecido para salvar a princesa, os habitantes converteram-se ao Cristianismo.
A história, antes tida como verdadeira, foi sendo abandonada. Apenas o simbolismo e a sua interpretação vingaram na cultura e religiosidade populares. O simbolismo valerá mais que a lenda e justifica para muitos a devoção ao santo: Jorge é o crente, fervoroso é forte com a sua fé, o seu cavalo branco é a Igreja, o dragão o paganismo e a idolatria, a tentação demoníaca. A princesa pode ser o mundo, até a alma, a fé intacta e pura. A lenda para muitos é mais antiga mas a sua significação, mesmo interpretada nas entrelinhas e no contexto, é muito importante. A devoção dos cruzados, que elegeram o santo como seu patrono, como muitos exércitos igualmente, vincaram a marca do santo na tradição cristã.
Muitos são os seus patrocínios, abundante a sua iconografia, São Jorge mesmo subvalorizado na liturgia, continua a ser um dos santos mais cultuados e acarinhados pelas várias famílias cristãs de todo o mundo e de todos os tempos.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa