Costa da Memória

Os judeus de Safim

Na manhã seguinte, no mercado, não sei a que propósito, perguntaram-me se era judeu. Respondi negativamente e repliquei com um «e você?» que deixou o meu interlocutor mudo. Não deve ser fácil assumir publicamente semelhante ancestralidade nos tempos que correm, mas a presença de uma significativa comunidade judaica na cidade, é um facto. Talvez fossem judeus, os comerciantes sentados no interior de pequeníssimas ourivesarias, velando objectos em ouro, prata e pedras preciosas.

Como já aqui foi mencionado, a comunidade hebraica era muito numerosa em Marrocos e habitava bairros específicos. No comércio luso-marroquino desempenhavam o papel de intermediários, recolhendo benefícios de ambos os lados. Em Safim, ficaram famosos judeus como Mair Levi, encarregado por D. Manuel de fabricar lambéis, panos com imensa procura. Levi conseguiu produzi-los «muito finos e bons» e, por isso, o feitor Lopo de Azevedo propôs ao rei que «se fizesse casa adequada num chão da cidade, próprio para esse efeito».

A respeito da natureza e origem dos lambéis dá-nos informação Duarte Pacheco Pereira no seu Esmeraldo de Situ Orbis: “…uma roupa feita como mantas do Alentejo, que tem uma banda vermelha e outra verde e outra azul e outra branca…”

Safim é daqueles locais difíceis de abandonar. Custou-me deixar os recantos entretanto descobertos nos quatro dias de estada, geradores de rotinas e até algumas amizades.

“Souira, Souira! Marrokuch, Marrockuch!” Eram esses os pregões mais comuns no terminal rodoviário de Safim, e referiam-se a Essaouira e Marraquexe. Ali travei conhecimento com Mohamed Etilaoui, um negociante de peixe de Agadir que falava muito bem Castelhano pois lidava com alguns compradores espanhóis, também proprietários de importantes unidades fabris nessa cidade. Etilaoui sobrevivera ao terramoto que, em 1960, arrasou a sua cidade. «Tinha então quatro anos, de nada me recordo», dizia. O amigo que o acompanhava, Soussi, um pouco mais velho, esse sim, lembrava-se de «acordar com as paredes do quarto derrubadas», miraculosamente salvo por um armário que se abrira para o resguardar. Mas não me parecia que o recatado marroquino estivesse para grandes conversas. Mesmo assim, Etilaoui, num acto de gentileza, assegurou-me que Soussi me informaria quando chegasse a camioneta para Essaouira, pois a ele esperava-o o expresso da CTM (assim se chama a mais importante companhia de autocarros do País), rumo a Agadir.

Mas, se ambos vão para Agadir, por que razão não partem juntos?

Só mais tarde me apercebi que Soussi não o fizera por uma questão de preço. Soussi não tinha negócios com os espanhóis… Restrições financeiras obrigavam-no a cumprir seis horas (três até Essaouira) num autocarro regional com os bancos soltos e as molas de suspensão partidas, por sorte, esse dia, com poucos passageiros. Apesar do desconforto, essa opção de transporte teve o condão de nos levar a ver a orla costeira. E que orla! Se exceptuarmos a unidade industrial de fosfatos que mancha a paisagem nos arredores da cidade – términus da minúscula linha férrea – toda a zona costeira é uma sucessão de terras áridas e praias lindíssimas intervaladas, aqui e acolá, com casas que se vê logo serem opções de férias para citadinos abastados. Povoação digna de nome, só mesmo Souira Kadima, ou melhor dizendo, Aguz, onde os portugueses ergueram fortaleza entre 1507 e 1508. Limitei-me a avistar a ruína das muralhas do Castelo Velho, junto ao mar, pois o autocarro não efectuou ali qualquer paragem. A não visita a Aguz deveu-se a um erro de planeamento, julgava-a bem mais próxima de Mogador, contando, por isso, fazer-lhe uma visita a partir dessa cidade. Paciência, ficaria para a próxima.

Erguido na foz do Tensift – conhecido como “rio dos Sáveis” – o castelo de Aguz – uma fortificação artilheira à semelhança da de Vila Viçosa – teve existência obscura e, após 1521, não se conhece qualquer notícia dele. Provavelmente terá sido abandonado por essa altura. Reza a lenda que o castelo foi edificado numa só noite e com pedras trazidas de Portugal.

Naquela época do ano, o Tensift não passava de um simples ribeiro de água lamacenta, de cor vermelha acastanhada. Consciente do meu erro estratégico, busquei com o olhar vestígios de uma outra fortificação portuguesa que sabia existir algures, não muito longe dali. Afinal, o Kasbha Hamidouch, construído nas fundações do Castelo Mascarenhas – a respeito do qual existem raríssimas referências – situa-se uns quilómetros a sul do Tensift, no alto de uma colina sobranceira ao mar. Parecia estar em bom estado de conservação.

Soussi acabou por se relevar um excelente interlocutor, senhor de uma forma de pensar muito própria. Talvez fosse impressão minha, mas à medida que descia a sul as pessoas pareciam-me mais consciencializadas. Antigo prisioneiro político, Soussi falou-me dos antigos «companheiros de luta», todos eles agora perfeitamente acomodados ao sistema. Senti desencanto nas suas palavras quando mencionou a ligação desses amigos ao «Partido Socialista de Portugal». Dizia ele: «– Vejo-os muito raramente. Estão cheios de dinheiro, mas, atacados pela gota e o reumatismo, mal saem de casa. Posso não ter nada, mas ao menos respiro saúde».

Joaquim Magalhães de Castro

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