Costa da Memória

A caravelinha de Azamor

A construção de praças-fortes na costa sul de Marrocos, tarefa do incansável D. Manuel I, começou de Sul para Norte. No universo geográfico que se estende entre Meça (Massa), na fronteira com o deserto do Sara, e Azamor, foram erguidos castelos em Santa Cruz de Guer (Agadir), em Mogador (Essaouira), em Aguz e em Safim (Safi), além, claro, das fortificações implantadas nesses dois pólos. E tudo isto num espaço de quinze anos apenas.

A cidade de Azamor, importante zona comercial a pouco mais de uma dezena de quilómetros de Mazagão, prezou desde sempre uma “independência” que preferia prestar vassalagem aos portugueses, o que lhes proporcionava o contínuo exercício das actividades mercantis, a obedecer ao rei de Fez e sujeitar-se às internas e eternas quezílias entre os alcaides locais. Mas os portugueses pretendiam mais do que vassalagem e, por isso, ocuparam a cidade em 1513. Porém, a situação geográfica da mesma, na margem do rio Morbeia (Umme Arrebia, em Árabe), a uns bons quilómetros do mar, era factor impeditivo de monta, o que obrigaria à construção de mais uma praça, em Mazagão, a quinta do reinado de D. Manuel, a última a ser erguida na costa marroquina e a última a ser abandonada, como já se disse aqui.

A minha viagem prosseguia no sentido inverso à cronologia que marcou a construção das duas últimas praças-fortes já visitadas. Azamor era então uma pequena cidade que os forasteiros aproveitavam para dar uma vista de olhos numa tarde livre aquando da sua estada em Mazagão. Foi o que fiz, mas com plena consciência de que Azamor merecia ser apreciada mais demoradamente. Entre uma e outra cidade, ambas amuralhadas, estende-se uma costa bem batida pelo vento e o mar. Os despojos ferrugentos de um barco naufragado comprovavam a perigosidade dos recifes, enquanto o luxuoso resort turístico “Mille et Une Nuits” piscava o olho aos indecisos, dando-lhes a entender que não precisavam de enfrentar o mar para poderem passar umas férias relaxantes. “A nossa piscina e o campo de golfe revitalizarão as suas energias”, anunciava o enorme painel publicitário junto à bem asfaltada estrada. Outros projectos do género estavam em preparação, prontos a justificar a nova auto-estrada que, vinda de Tânger, passava ao largo de Mazagão, prolongando-se depois até Marraquexe.

O autocarro número 3 deixou-me à entrada principal do Castelo de Azamor, talvez naquela entrada onde há quinhentos anos morreram oitenta pessoas asfixiadas quando, em pânico, saíam da cidade, pois as forças portuguesas avançavam dispostas a ocupar casas e templos, como nos relata Leão, o Africano, cronista marroquino convertido ao Cristianismo. A 3 de Setembro de 1513, Azamor rendia-se sem combate.

O movimento de transeuntes era agora bem mais compassado. Passavam-se minutos sem que se visse uma alma transpor a entrada nas reformuladas muralhas ocres da cidade oculta feita almedina, contrariamente ao casco medieval de inspiração europeia apresentado por Mazagão.

Em frente da porta do bastião sudoeste, um grupo de jovens jogava à bola e um deles combinava um capuz de Pai Natal com a camisa 7 do Manchester United.

Ao contornar a muralha fiquei surpreendido com a sua extensão. Ultrapassado o lado norte, desci até ao rio, onde fui confrontado com extensivas obras de pavimentação na secção sul que futuramente permitiriam passeios à beira-rio. Daí podia-se apreciar as casas construídas – é mais correcto dizer, penduradas – na encosta íngreme. Algumas tinham desabado por completo, outras estavam a ser reconstruídas, outras ainda podiam agradecer às raízes das figueiras o facto de não serem já uma ruína.

Em 1486, os moradores de Azamor, cansados da instabilidade regional, pediram protecção a D. João II, tornando-se assim vassalos do Reino de Portugal, à semelhança, de resto, do que tinham feito os habitantes de Safim. Pagavam como tributo dez mil sáveis, pois esse tipo de peixe abundava no rio, e permitiram o estabelecimento de uma feitoria lusa, sendo escolhido o escudeiro Martim Reinel como primeiro feitor, tendo ido directamente do Reino para negociar a vassalagem dos azamorenses. E feitor permaneceria, até 1501.

A razão que levou a Coroa Portuguesa a querer apoderar-se da cidade deve-se não tanto à falta de pagamento do tributo durante dois anos, ou aos casos de pirataria cometidos sobre navios portugueses, mas sobretudo a um episódio, de alguma forma, ligado à pesca. Em 1508, Rodrigues Bérrio, morador de Tavira costumeiro na pesca dos sáveis em Azamor, deu conhecimento a D. Manuel das profundas divisões internas dos seus habitantes e do desejo de alguns deles de se tornarem súbditos portugueses. Tendo isso em conta, o rei enviou uma frota para tentar tomar a cidade, “mas só se não houvesse resistência”. Resistência não houve, mas o certo é que Azamor, preparada para todas as eventualidades, deu-se ao luxo de zombar da frágil armada portuguesa de apenas cinquenta navios e dois mil e quinhentos homens de combate. Em tom de mofa, os moradores, que bem conheciam Rodrigues Bérrio, exclamaram: «Então, Bérrio, com quatro caravelas quereis tomar Azamor?» Desta provocação surgiria o ditado “tomar Azamor com uma caravelinha” presente nas Cartas do padre António Vieira.

Quem não gostou da piada foi D. Manuel, que volvidos cinco anos enviava “uma armada de 500 navios, 13 mil homens de pé e mais de 2 mil cavalos, sem contar a gente do mar” para conquistar de vez a altiva cidade.

Joaquim Magalhães de Castro

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