O castelo de Chella e as almogavarias
À saída da embaixada da Mauritânia deparei de novo com o motociclista. Uma pequena bandeira amarela e verde denunciava a sua nacionalidade, apesar de a matrícula da Yamaha ser alemã. Tratei logo de me identificar.
«– E nós a falar um com outro em Inglês, cara!», exclamou o paulista Rafael, filho de pai libanês e mãe brasileira.
Rafael escrevia para revistas de motociclismo e graças a isso percorria o mundo, o que largamente compensava o “incómodo” de ter de envergar continuamente camisetas com os logótipos dos patrocinadores Nautica e Swiss Air, entre outros, e fazer-se fotografar com elas nos mais diversos pontos do planeta.
No dia seguinte, regressei à embaixada e entregaram-me o passaporte com o visto sem me terem cobrado um euro. Certamente esqueceram-se, deduzi. E por isso confirmei, perguntando:
«– É tudo?»
«– Sim», respondeu o funcionário, sem levantar os olhos do papel onde gatafunhava umas palavras.
Ainda me passou pela cabeça a possibilidade de a diplomacia portuguesa (a nossa embaixada ficava em frente) ter assinado um convénio que nos isentava de visto, porém, seguindo o adágio popular “quando a esmola é grande, o pobre desconfia”, comparei o meu visto com o do Rafael para ver se a coisa batia certo. Tudo igual. Visto válido, portanto. Conselho de brasileiro:
«– Não esquenta não, Joaquim. Teria razão de ficar preocupado se lhe tivessem cobrado o dobro».
Um outro motociclista neozelandês considerava que este meu feito era uma vitória, e, por sua vez, proclamou:
«– Viajante 1, Embaixada 0!»
E como de viagens se tratava, contou-me que dali traçaria caminho para passar o Natal algures na Libéria ou quiçá na Serra Leoa.
Chris, assim se chamava o “kiwi”, mostrou alguma incredulidade quando lhe disse que os portugueses permaneceram um século no Japão, sem quaisquer rivais à altura, embora admitisse a presença lusa nos países do golfo da Guiné, pois estranhava que as pessoas lhe chamassem “porto”, quando vivia nessa região.
No regresso à cidade, e porque a luz do pôr do Sol era de eleição, fiquei junto ao Castelo de Chella, outra magnífica fortificação de taipa, na periferia de Rabat, que desde o tempo dos romanos (há vestígios da cidade de Sala Colónia) viu passar os mais diversos tipos de gente. À entrada estavam os habituais vendedores ambulantes e um grupo de turistas, quais habitantes de um distante planeta, que simplesmente ignoraram a minha saudação.
Vacinado pelos “uis” e “ós” interpeladores que irritam (e muito), ignorei o chamamento de um homem sentado ao lado dos vendedores e contornei a muralha. O tipo, sempre a gritar, seguiu no meu encalço, e só então reparei que era um polícia.
«– Por aí é perigoso», alertou, fazendo a sinalética de um degolar de cabeça. Apontou depois para minha EOS 400 D, perguntou o preço e quando lhe respondei, retorquiu: «– Sabe o que representa seiscentos euros para um marroquino?»
A sua prédica era tão convincente que, por breves momentos, julguei estar na presença do criminoso perfeito, que, disfarçado de polícia, preparava o golpe, e estudava já forma de me esquivar a uma possível agressão. Mas não, aquele era um genuíno polícia, protector de turistas, assim no estilo do “turist polis” tailandesa que nos bons velhos tempos até boleias me costumava arranjar.
Guardava na memória recente (e isto vem a propósito) o quase assalto a que estive sujeito em Tânger só porque teimei fotografar um velho canhão português resguardado numa parte da muralha algo inacessível. Valeu-me, na altura, a presença de um miúdo do bairro que acabaria por dissuadir os dois gandulos que vinham com intenções de me aligeirar da máquina fotográfica e do mais que pudessem. Ao ver a navalha na mão de um deles, o rapaz correu para o interior da almedina, gritando: «Cuchillo!, cuchillo!» E eu, claro, fiz como esse meu verdadeiro anjo-da-guarda: corri também, até à arcada protectora que separava as ruínas do mundo dos vivos.
A questão do cereal, a busca do pão, era fulcral em todo o processo da expansão portuguesa no Norte de África. Encarcerados nos estreitos muros de uma fortaleza, os habitantes das praças-fortes estavam dependentes dos abastecimentos que chegavam da metrópole. Mesmo assim, havia quem arriscasse plantar a sua horta no exterior para se prover de legumes frescos. Ali iam também buscar lenha para os fornos ou erva para o gado, numa acção que ficou conhecida como “almogavaria”. Mas isso comportava uma série de riscos, pois havia guerra todos os dias. Foram muitos os que pagaram com a vida a ousadia.
Joaquim Magalhães de Castro