As armas portuguesas de Ceuta
Ceuta surpreende até o mais prevenido dos visitantes. A mim surpreendeu-me o facto de o brasão da Ciudad Autónoma ser ainda o escudo com as armas de Portugal. Com uma única diferença: o sétimo dos castelos em redor das cinco chagas de Cristo surge na parte inferior do escudo e não na parte superior, como consta no estandarte nacional.
«– Representam as sete colinas da cidade. Sebta, Ceuta em Romano, é sinónimo de sete», esclareceu a menina de Murcia atrás do balcão do posto de turismo onde fui buscar um mapa da cidade.
Dir-me-ia mais tarde a sua colega, andaluza de Jerez de la Frontera, que o edifício onde estávamos assentava nos vestígios da muralha inicial, erigida pelos portugueses. De facto, um piso de vidro – uma dessas intervenções arquitectónicas modernas que me deixam sempre de pé atrás – revelava alguma da pedra e da taipa unidas pela argamassa.
Preferi olhar para o Baluarte dos Maiorquinos, importante troço defensivo em cunha, à frente do qual seria cavado um fosso com uns trinta metros, que separaria para sempre a cidade do resto do território. As Muralhas Reais – a Muralha Portuguesa e um conjunto de estruturas acrescentadas pelos espanhóis – continuavam a ser um dos cartões-de-visita mais importantes de Ceuta.
Numa rotunda em frente, a estátua do infante D. Henrique, El Nabegador, apontava o caminho para Norte; ou seja, para Espanha. Havia algo de profundamente errado naquilo. Não deveria o mentor das descobertas indicar o caminho para Sul, já que foi esse o rumo seguido? Provavelmente, esteve distraído o artista, autor do projecto. Ou será que os espanhóis decidiram nacionalizar o duque de Viseu como fizeram com o Saramago ribatejano?
Ceuta é a cidade, em todo o mundo, onde com maior frequência vemos a mais importante insígnia nacional. Está presente em todas as bandeiras do município, sedes de associações – sejam de empresários, de advogados ou de simples clubes de recreio ou de futebol – nas tampas das sarjetas, nos caixotes do lixo, em cima de muros, dentro dos castelos, nos vitrais, incrustadas no metal das portas, nas janelas, nos candeeiros, nas T-shirts dos funcionários camarários, nos ladrilhos dos jardins públicos, nos azulejos, nos ferros dos vários gradeamentos, no granito à entrada de certos edifícios ou praças, nas portas dos táxis, enfim, serve até como símbolo para a sede episcopal. Ceuta é, decididamente, a urbe das quinas.
Chegar ao Domingo a uma cidade espanhola é como chegar a Marte. Tudo está fechado. Nem imaginam a minha dificuldade em encontrar sítio onde beber um simples café. Mas quando o descortinei, junto à calle Maria Cabral, saiu-me dali um galão a pedir meças aos que se servem nos cafés da Invicta. De resto, o ambiente era muito similar ao nosso, com os clientes habituais sentados ao balcão, na conversa ou a lerem os números atrasados do jornal local (o Faro de Ceuta), pousados em cima da arca dos gelados. Essa minha caminhada tinha ainda como meta a busca de alojamento, prioridade de qualquer peregrino. Trazia num papelinho, que mão amiga me fizera chegar dias antes da partida, a morada da pensão Charito, no número 5 da calle Arrabal, a única com um preço em conta.
«– Que necesitas, que te veo as vueltas a mas de una hora?». A observação da senhora da mercearia pecava pelo exagero, mas não deixou de me sensibilizar. Era o primeiro sinal da natural simpatia das gentes de Ceuta. Graças a ela fiquei a saber que a pensão Charito, «onde costumavam ficar hospedados os operários das obras», assim como a pensão Málaga, ali perto, se encontravam encerradas. Por isso, vi-me de novo comprimido entre as ruas Tenente Pacheco e Tenente Fernandez e, quase sem dar conta, dei de caras com a igreja da Nossa Senhora dos Remédios, seguindo depois pela calle Real rumo à Praça dos Reis, onde se situava o Hostal Real. Pediram-me ali trinta euros por um quarto manhoso, sem janelas, como quem me fazia um enorme favor. Valeu a pena avançar um pouco mais, percorrendo na sua totalidade a calle Camoens (quando é que os espanhóis aprendem a escrever os apelidos da nossa gente correctamente?), onde deparei com um enorme projecto de Siza Vieira quase pronto – bastante discutível mancha de branco imaculado em pleno centro histórico – que comportava um auditório, um conservatório e uma área comercial. No impecavelmente limpo Bohemia Hostal, um lindíssimo edifício, onde estava sediada a Confederação dos Empresários de Ceuta, vi-me obrigado a aceitar os mesmos trinta euros. Embora as condições fossem bastante aceitáveis, não havia uma única toalha à disposição.
«– Los españoles son uns cabrones!», desabafou a mulher-a-dias marroquina que me abriu a porta e procedeu ao registo habitual. E são cabrones porque «Ceuta é de Marrocos». E, consequentemente, na perspectiva dessa nativa de Tetuão, não deviam estar ali.
«– Portugal!?», exclamou ela ao folhear o meu passaporte. «– Portugal se queda en España, no?».
É. Mais ou menos isso. Lá iremos.
Joaquim Magalhães de Castro