Sopa de favas e o salto para Tarifa
Poesia à parte, encaremos a realidade dos factos da Tânger de hoje. Os artistas que ali viveram antes de as antenas parabólicas terem ocupado os telhados dos terraços não depararam com as legiões de desenraizados aguardando a oportunidade para dar o salto até à Europa.
Diariamente, a partir das quatro da manhã, vestidos com roupa suja, como se fossem para o trabalho, grupos deles dirigiam-se ao porto para tentar esconder-se nos chassis dos camiões e assim atravessar o estreito, rumo a Espanha. Lograda a tentativa, pilhados pela polícia, que os espancava forte e feio, regressavam aos quartos dos albergues baratuchos que partilhavam, aos seis e aos sete em cada quarto, para dormirem umas horas antes de se enfiarem num café a beber chá de menta e a fumar cigarros ou um pouco de kif (se alguém lhes oferecesse), deleitando-se com as cenas de acção do Top Gun ou mixórdias do género que o canal de cinema temático do mundo árabe lhes assegurava, pois esse prazer, à semelhança dos jogos de futebol, por enquanto, era ainda gratuito. Vi-os muito jovens ainda, com quinze anos, e até menos, à entrada dos tascos, esperando que alguém lhes pagasse uma sopa.
«– É muito difícil, mas todas as noites tentamos. As vezes que forem necessárias. Hoje não tivemos muita sorte», confessou-me um deles. Trabalhara em Espanha «durante dois anos, e sem papéis». E até ganhava bem. Mil e tal euros por mês, «mas encontraram-me sem documentos e deportaram-me».
O seu colega, cuja namorada romena pagara «mil euros pelos papéis» e conseguira residência em terras ibéricas, fora recentemente apanhado pela polícia ao tentar esconder-se num camião e levara umas boas bastonadas que lhe tinham deixado dois lanhos profundos na face. Apreciava-lhes a persistência. Se dependesse de mim, deixava entrar todos esses ilegais na Europa.
«– Os polícias marroquinos batem, os espanhóis não», dizia um deles, que lograra chegar à outra banda, sendo, contudo, recambiado de imediato.
Essa noite, quando mencionei o assunto ao senhor Isfan, ele replicou:
«– Os polícias de agora talvez não, mas no tempo de Franco, ai não que não batiam. Batiam e disparavam, a sangue-frio».
Isfan viveu parte da juventude em Espanha, tendo aproveitado para viajar um pouco até à Irlanda e à Islândia.
«– Se soubesse o que sei hoje, tinha ficado em Espanha. Nunca mais teria regressado a Marrocos».
Embora mantivesse uma postura bastante crítica em relação ao regime político em vigor, Isfan, como bom marroquino, exibia, na parede do átrio do seu hotel, vários retratos do actual monarca e do seu pai. Num desses retratos, Mohammed VI, de óculos escuros e galões de general, mais parecia um dos caudilhos da junta birmanesa.
Já o dono da loja onde comprei um corta-unhas, berbere de sete costados, não receava o peso das palavras.
«– O rei é um ditador», dizia ele. «– E o pai, Hassan II, tem as mãos manchadas com o sangue de milhares de marroquinos».
Os berberes, autóctones do Magrebe, maioritariamente em Tânger, nunca gostaram dos árabes, segundo eles, «os primeiros dos invasores», detentores do poder desde que, partindo do Magrebe, conquistaram toda a Península Ibérica.
A quem a quiser verdadeiramente conhecer, Tânger não pára de surpreender, com o seu elegante amuralhado, as ruas sinuosas e todo o trajecto até à parte alta da cidade, assinalada por imponentes edifícios neoclássicos e o boulevard. Assim designam, à francesa, a principal avenida da cidade, onde está a Praça de Faro. Dos três canhões ali existentes, dois são de fabrico português. Faro está geminada com Tânger, daí o nome. Também por aquelas bandas me perguntaram se era de «Lisboa, Porto ou Cascais». Só faltou a menção às batatas fritas… E também ali tive de lidar com um falso cicerone, que se apresentava, neste caso, como «cozinheiro do vosso hotel»; enfim, o clássico dos estratagemas-engana-turistas, para o qual me tinham alertado.
De nada me valeu a informação recolhida no Sindicate d’Initiative, onde nem sequer consegui uns míseros panfletos, quanto mais um mapa da cidade. «Pode procurar na Internet», desculpara-se a funcionária, em jeito de despedida. Os franceses têm, por vezes, estranhas formas de dar nomes às coisas: chamar a um posto de turismo “sindicato de iniciativa”? Mas isso é coisa que se diga?
Desçamos de novo até à almedina, junto à Mesquita Sidi Boud Amid, no jardim da Praça 9 de Abril de 1947 – data que assinala o regresso do exílio, no Madagáscar, do rei Mohammed V (avô do hodierno monarca) e o início do protectorado francês – onde “descobriria” mais uns tantos canhões, sendo um deles de origem portuguesa. Ali perto, numa dessas cantinas para pobres, a bissara superava todas as outras que até então tinha provado.
Durante o dia frequentavam aquele espaço sobretudo crianças, velhos e mulheres. E por falar em mulheres… Avistei-as, ocasionalmente, sentadas nos cafés, algumas fumando o seu cigarro, um claro sinal de mudança nas mentalidades. Na rua passavam outras senhoras, cobertas com véus ou trajando à europeia, por vezes com botas de tacão alto, algumas delas verdadeiras princesas de Xerazade fruto das conquistas dos khans e tamerlões islamizados.
Joaquim Magalhães de Castro