Cidade entre dois mundos
Os albergues no interior da almedina eram quase tantos quantos os falsos guias insistindo em levar os estrangeiros por ali, conduzi-los por acolá, provocando o desnorte a quem procurava orientar-se de forma tranquila.
Ciente do meu limitado orçamento, acabaria por encontrar um quarto bastante em conta na Pensão Fez, não fosse o gerente carrancudo que, pelos vistos, não gostou nada do meu reparo, simples conversa circunstancial, ao facto de o polícia da imigração ter utilizado uma página vazia do meu passaporte para colocar um número de entrada, além do carimbo habitual, pois era assim que mantinham o registo, sem a qual a estada neste país se podia prolongar ad aeternum.
«– De que estava à espera? Está em Marrocos, não é no seu país!», exclamou o homem, com ar de nacionalista ofendido.
Tais detestáveis modos levaram-me a buscar novo poiso. A hostilidade inicial, que me impressionou pela negativa, daria lugar a uma série de agradáveis encontros: fosse um indivíduo que vivera nas Canárias e me desejou boa estada na cidade apesar de não ter optado pelo seu hotel; fosse o gerente indiano que conhecia Goa, embora confundisse Portugal com a Espanha. Não foi o primeiro nem o último a equivocar-se, embora estivéssemos a poucas centenas de quilómetros do Algarve.
Acabaria por encontrar o que procurava num edifício situado num beco sem saída que servira outrora de hospício. Tive até direito a um terraço só para mim – Tânger inteira ao alcance do olhar! – e um proprietário com quem dava gosto conversar. Graças ao senhor Isfan, assim se chamava, reconciliei-me com a agreste cidade, que, definitivamente, se aprende a gostar.
«– Viviam aqui muitos espanhóis, demasiados e durante demasiado tempo», dizia ele.
Curiosamente, muitas das residenciais visitadas tinham acolhido diversos tipos de serviços administrativos durante o período colonial. No Hotel Olid, por exemplo, funcionavam os Correios, e a Pensão Fuentes, outrora sede bancária, mantivera esse lado prestimoso ao decidir transformar o seu rés-do-chão num café. Melhor dizendo, sala para assistir às partidas do desporto-rei, havendo para o efeito um grande plasma e filas de cadeiras alinhadas, tal como no cinema.
Era Domingo e o café da Fuentes estava à pinha, pois o Real Madrid enfrentava o Málaga. Os fregueses, todos do sexo masculino, viviam os momentos do jogo intensamente, gritando quando um golo era marcado, nunca se esquecendo de protestar sempre que consideravam que o árbitro tomara a decisão errada. Ouvi-os berrar “chuta!”, tal como nós o fazemos. Escusado será dizer que, àquela hora, em todos os cafés da cidade, repetia-se o panorama. Os desafios de La Liga eram, em Marrocos, assunto quase religioso, havendo uma extrema rivalidade entre os adeptos locais do Real e do Barça, os clubes predilectos.
A influência europeia não se patenteava apenas no casario e na toponímia, ou até na praça de touros pouco utilizada, mas também nos cafés com esplanadas e nos seus empregados de colete e paletó, manejando habilmente a bandeja com as bicas, os copos de água e os respectivos pires com torrões de açúcar, enquanto se esgueiravam por entre as mesas redondas de ferro às quais confortavelmente se sentavam os clientes.
Um dos alojamentos mais apetecidos de Tânger eram as ditas maisons d’hôtes, a trinta e cinco euros por cabeça. Pode-se até dizer que estavam na moda. Num patamar bem mais elevado, tínhamos os riads com pátio interior e os hotéis de cinco estrelas, como o secular Hotel Continental, recheado de quartos e salas próprias de um palácio dos sultões, espreitando, hoje como sempre, o movimentado ancoradouro. Ali se alojaram os famosos – actores, escritores, pintores – que deram nome e reputação a Tânger, cidade internacional, pião de nica das potências que ali tiveram o seu talhão, mesmo durante os períodos em que se constituiu como protectorado francês ou colónia espanhola, à semelhança do que aconteceu em Xangai, por exemplo.
Falava-se no poder de sedução e inspiração que Tânger provocava. “Paira ainda no ar o mistério desta cidade que remonta ao tempo em que era uma zona internacional”. A frase era das brochuras turísticas. Numa toada mais romântica, havia quem apelidasse Tânger de “cidade branca”, cenário de inúmeros filmes e poiso predilecto de artistas plásticos como Delacroix e Matisse, compositores como Saint-Saens, cineastas como Pier Paolo Pasolini, ou literatos como Pierre Loti, Tenessee Williams, Jean Genet, Joseph Kessel, William Borroughs, Paul Bowles, entre tantos outros, que ali se deixariam ficar, nessa “pomba pousada nos ombros de África”, cativados pelo seu encanto e o livre acesso às drogas, ao absinto e ao sexo, também com menores de idade, pois a pedofilia foi realidade consentida. Movimentavam-se, tão ilustres personagens, pelo Petit Socco, o Grand Socco e o Jardim de Mendoubia, antiga residência do governador alemão, homem de confiança do imperador Guilherme II, onde durante muitos anos estiveram guardados os trintas canhões que hoje vemos espalhados pela cidade. Na época, a tisana de menta tinha como rival o xarope de absinto, cuja planta ainda se vende livremente nos mercados e é utilizada para aromatizar o chá verde, sendo conhecida como chiba. Derivará daí a expressão nortenha “estar com uma chiba”?
Joaquim Magalhães de Castro