COEXISTÊNCIA HARMONIOSA NAS ILHAS DAS ESPECIARIAS

COEXISTÊNCIA HARMONIOSA NAS ILHAS DAS ESPECIARIAS

«As flores da aceitação mútua, da convivência e do perdão»

São boas as notícias que nos chegam das outrora afamadas Ilhas das Especiarias. O tempo dos conflitos civis, do confronto entre comunidades cristãs e muçulmanas parece ser apenas uma memória distante. Pelo menos assim o entende D. Seno Ngutra, bispo de Amboíno, capital da Província das Molucas, no Leste da Indonésia. “Atravessámos o deserto do conflito inter-religioso”, diz ele ao repórter da agência noticiosa FIDES, “mas agora, nesse deserto, surgiram as flores da aceitação mútua, da convivência e do perdão”. Mantêm-se boas as relações entre pessoas de comunidades religiosas distintas, “tanto a nível de líderes como entre a gente comum”.

Os conflitos inter-religiosos, porém, não são novidade naquela região. Foram uma constante desde os tempos em que os portugueses – desde 1512 – por ali faziam comércio, residiam e proselitavam, mas também moviam intrigas e guerreavam, sempre em busca de benéficas alianças com os sultões locais.

Curiosamente, ao longo dos tempos a ilha de Amboíno seria frequentemente apontada como exemplo de boa convivência inter-religiosa; um ambiente de paz e tranquilidade garantido por um sistema ancestral de entreajuda denominado de “pela”, que levava a que aldeias de ilhas diferentes fizessem geminações entre si e que os cristãos ajudassem a construir mesquitas e os muçulmanos a erguer igrejas. Em teoria assim era, se bem que na prática a tensão entre as diferentes comunidades – amboínos cristãos, por um lado; amboínos muçulmanos e grupos de muçulmanos migrantes vindos do vizinho arquipélago das Celebes, por outro – nunca deixou de ser uma realidade preocupante. Qualquer atitude mal interpretada, qualquer discussão, qualquer mal-entendido podia resultar em violência generalizada. E, de facto, assim aconteceu em 1999 com o desencadear de um clima de guerra civil que se prolongaria até 2002, provocando cerca de quinze mil mortos e mais de quinhentos mil deslocados. A diocese de Amboíno enfrentou então uma grave crise. Cerca de oitenta igrejas, diversas escolas, casas particulares, hospitais e instituições católicas foram seriamente danificados durante esse conflito que terminou oficialmente com a assinatura da “Declaração de Malino”, em Fevereiro de 2002. Em Junho do ano seguinte, realizou-se em Amboíno uma cerimónia de reconciliação – com a presença de vários líderes religiosos locais e milhares de fiéis –, fortemente desejada e encorajada pelo então bispo católico de Amboíno, D. Petrus Canisius Mandagi. Chegou-se pois à conclusão que o conflito fora gerado por um misto de provocações da parte de militares fiéis ao então deposto ditador Suharto e de reivindicações autonomistas antigas que remontavam à efémera República das Molucas do Sul; prontamente aniquilada por um Estado indonésio ainda em gestação.

D. Seno Ngutra, nomeado em 2021, pôde testemunhar o novo (e presente) paradigma após uma visita pastoral às diferentes ilhas (são cerca de cinquenta na sua diocese, com 56 paróquias), algumas de maioria muçulmana, outras de maioria cristã. O prelado constatou que há agora harmonia entre cristãos e muçulmanos – e também entre hindus e budistas. “Aprendemos a lição do passado”, diz D. Seno Ngutra, profundamente empenhado em organizar encontros inter-religiosos que proporcionem a “germinação da boa semente da convivência”. “O segredo – especifica – está na convivência quotidiana e no semear de amizades; não na construção de muros ou guetos nas aldeias”. Reconheceremos o Outro como ser humano, merecedor de misericórdia, a partir do momento em quem o encaramos como irmão ou pessoa a ser amada. “Sobre essa base se solidificou a paz nas Molucas; sobre essa base conseguimos o perdão mútuo, a dinâmica que pôs fim à guerra. Do perdão surge sempre algo ‘novo’, que no nosso caso trouxe a alegria da fraternidade”, conclui o bispo de Amboíno.

“Neste caminho da coexistência – observa ainda – revelaram-se muito úteis os ensinamentos do Papa Francisco, que tentamos aplicar no nosso contexto, incentivando o diálogo e não o proselitismo”. Por exemplo, a Igreja Católica local possui uma igreja e três escolas primárias numa ilha de esmagadora maioria muçulmana: apenas quatro por cento da população é católica. São muçulmanos 99 por cento dos alunos das três escolas. Há também uma escola católica noutra ilha com população animista. “Foi um presente para essas pessoas e algumas famílias pediram para baptizar os seus filhos, em total liberdade”, nota D. Seno Ngutra, especificando que a comunidade diocesana gere mais de uma centena de escolas. A missão, explica o bispo, “muitas vezes envolve o compromisso com a educação, o que significa proximidade com as pessoas: é uma forma de caridade”. Em inúmeras ilhas existem também “estações missionárias”, pequenas capelas onde se deslocam regularmente sacerdotes. “A partir daí podem surgir o interesse pela fé e as conversões”, sublinha, elogiando o trabalho dos catequistas voluntários, homens e mulheres, que ajudam os sacerdotes e diáconos, especialmente nas ilhas mais distantes.

O Catolicismo ali introduzido pelo Padroado Português do Oriente – sendo São Francisco de Xavier a absoluta figura de referência – e que em 1558 contava já com cerca de dez mil almas em Amboíno e ilhas vizinhas, seria fortemente abalado com a chegada dos holandeses no início do Século XVII. Só no Século XX seria fundado o Vicariato Apostólico de Amboíno, cidade elevada à categoria de diocese na década de 1960 e que conta hoje com cerca de 115 mil católicos numa população de 3,2 milhões.

Joaquim Magalhães de Castro

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