As Três Idades de Joaquim de Fiore
Apesar de todas as heresias que temos vindo a falar, a Cristandade não vacilou. Antes, afirmou-se. Mais forte, com o ataque às heresias. Muitas vezes de forma cruel, como se de uma cruzada se tratasse. Outras, combatendo-se com a pregação, com reformas, com ordens activas, que iam para o mundo, abraçavam a pobreza e viviam nas cidades e suas periferias. Com as periferias humanas. Novos tempos, novas realidades, novos imperativos e exigências. Mas as heresias a subsistirem, de irradicação difícil.
Os mitos milenaristas difundiam-se. No processo histórico, nas consciências, na cultura e mentalidades da Europa medieval. A crença apocalíptica, do fim dos tempos, no retorno do Messias salvador era uma realidade na religiosidade a época. Bem como da instauração de um novo céu, de uma nova terra, perfeitos, que sobreviveriam à degradação e se sobreporiam ao triunfo do mal. O bem impor-se-ia. Por isso, no século XII, o Evangelho, enfim todo o Novo Testamento em suma, eram os textos que marcavam a Cristandade. Mas o que mais inflamava os espíritos e suscitava mais leituras e exegeses era o Livro do Apocalipse, o texto da moda, dir-se-ia.
Acreditava-se que era chegada a era de Cristo, do Filho, como dizia o abade Joaquim de Fiore (ou Flora). Estava-se numa época de afirmação do Teocentrismo, ou seja, Deus no centro de tudo, com a Igreja a exercer um monopólio intelectual que vai estabelecer uma cultura fortemente teocêntrica. É neste contexto que aparece o Joaquimismo, termo utilizado para descrever as ideias do monge cisterciense Joaquim de Fiore, abade de um mosteiro na Calábria, Sul de Itália.
Joaquim de Fiore
Quem foi Joaquim de Fiore? Era um monge, poeta, artista, um visionário. Mas acima de tudo um místico, um teólogo também, filósofo segundo muitos. Nasceu entre 1130 e 1135, vindo a falecer em 1202. Era tido no seu tempo como um santo, mas também portador de ideias controversas. Os cistercienses discretamente o afastaram, mas Joaquim não abandonou o monaquismo, criando uma “observância” cisterciense a partir da sua inspiração. Todavia, foi provavelmente um dos homens mais importantes da cultura medieval, da renovação espiritual do seu tempo e com marcas indeléveis na espiritualidade posterior.
As suas ideias baseavam-se principalmente na sua teoria dos tempos da Cristandade: as três idades do mundo. Estas correspondiam à Trindade do Cristianismo: o tempo do Pai que teria começado antes da graça com Adão, teve o seu apogeu com Abraão e terminou com o nascimento de Cristo; o tempo do Filho, que é o da Graça, inicia-se com o Rei Orzias, floresce com João Baptista e Jesus e estaria próximo do fim, no século XII; e o último dos tempos seria o do Espírito Santo, o da Graça maior, que poderia já ter começado com São Bento e que frutificaria em breve com o retorno de Elias e terminaria com o Juízo Final. No sentido radical das suas palavras, Joaquim de Fiore não é um “milenarista”, pois não alude à duração daquele último período, ou era. E não é também “messianista”, pois não fala sobre a vinda do Messias. Deixa tudo em aberto. Fiore fala sim sobre “um período de descanso da terra”, que o vai caracterizar como místico e foco de contestações, na sua herança espiritual.
O Joaquimismo tem as suas raízes nos textos bíblicos e na Torá judaica, textos em que “o mito escatológico (…) se diferencia dos demais pela pregação de uma purificação e não de uma nova concepção, onde o paraíso devolvido não terá mais fim”. A posterioridade de Joaquim de Fiore acabaria por atraiçoar a pureza dos seus pensamentos, com colagens proféticas e messiânicas que em nada existem nos textos do abade de Fiore. Foram traçados itinerários filosóficos e religiosos que chegaram até aos nossos dias ligados a pensamentos religiosos, afastadíssimos da originalidade do pensamento joaquimita. As pegadas do Joaquimismo no decurso dos séculos são a história das traições ao seu pensamento, como dizia o jesuíta Henri de Lubac, o seu maior e mais reputado estudioso. Todavia, em 1263, a Igreja Católica Romana julgou parte das doutrinas do abade de Fiore como hereges e condenou-as. Mas a sua influência era já imensa e capital.
A sua teoria das três idades define o fundamento místico da doutrina de Joaquim de Fiore: o “Evangelho Eterno”, fundado na interpretação do texto em Apocalipse 14:6. Fiore, dito de forma mais objectiva, criou uma concepção da história em analogia com a Trindade, dividindo-a em três épocas fundamentais:
– A Idade do Pai, que corresponde ao Antigo Testamento, a qual se caracteriza pela obediência da humanidade às Regras de Deus;
– A Idade do Filho, entre o advento de Cristo e 1260, representado pelo Novo Testamento , quando o homem se tornou filho de Deus;
– A Era, ou Idade, do Espírito Santo, iminente (em 1260), quando a humanidade estaria a entrar em contacto directo com Deus, alcançando a total liberdade pregada pela mensagem cristã. O Reino do Espírito Santo seria uma nova fase do amor universal, a partir do Evangelho de Cristo. Nesta nova era, surgiria uma nova organização eclesiástica, uma nova Igreja se fundaria. A Ordem da Justiça iria governar então a Igreja. Esta Ordem dos Justos foi mais tarde identificada com a Ordem Franciscana e São Francisco como anjo do sétimo selo, que fecharia a história do mundo e traria a salvação. Assim pregava o franciscano espiritual Gerardo de Borgo San Donino.
De acordo com Joaquim de Fiore, somente nesta terceira idade será possível entender realmente as palavras de Deus no seu significado mais profundo, e não apenas literalmente. Fiore concluiu que esta era do Espírito Santo começaria em 1260 baseado no Livro do Apocalipse (versículos 11,3), onde se refere que Deus enviará «(…) duas testemunhas que hão-de profetizar, vestidas de luto, durante mil duzentos e sessenta dias». Nesse ano, em vez da Parusia (o segundo advento de Cristo), uma nova época de paz e concórdia começaria, tornando a hierarquia da Igreja desnecessária. No centro do legado joaquimita, está pois a ideia de que haverá ainda uma fase final da História, um tempo abençoado ainda por vir. O apogeu da história será sinalizado pelo aumento da espiritualidade no mundo, um tempo do intelecto e da ciência. Daí que o aparecimento de novas ordens, como acima falámos, mendicantes e nas franjas das cidades e valorizando a pobreza evangélica como via da perfeição e santidade, tenha sido por muitos colado ao Joaquimismo e até suscitado desconfiança por parte da Igreja. Que apodou os joaquimitas de heréticos, mas aprovou os novos institutos religiosos. O apocalíptico e escatológico Joaquimismo estavam porém para ficar e marcar os tempos…
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa