O trato e os padrões
O trato de mercancia entre portugueses e a gente da ilha do Bornéu acontece na sequência da tomada de Malaca e da imediata necessidade de encetar cordiais relações com os sultanatos costeiros da região, quase todos islamizados, ficando à partida assegurado o apoio de reinos hindus e budistas sobreviventes à vaga proselitista, caso dos javaneses de Mahajpati e dos samatrenses de Minangakabau, que enviariam a Malaca, respectivamente, “ofertas de paz” e “quatro navios”, cortesias às quais Albuquerque correspondeu com igual peso e medida.
Os esforços diplomáticos do almirante cedo dariam frutos, com os vizinhos reis de Kampar e de Pahang a declararem-se vassalos do rei de Portugal, exemplo seguido posteriormente pelos mais distantes potentados samatrenses de Indragiri, Aru, Pasai (onde, em 1509, Diogo Lopes de Sequeira deixara um padrão, além do que plantara mais a norte, em Pedir, aquando da malograda visita a Malaca); pelo de Ternate, nas Malucas; pelo de Banten, em Sunda; pelos reinos javaneses de Gresik, Surabaia, Tuban e Sidayu; e ainda pelo reino do Brunei, na ilha do Bornéu, como nos dá conta o informe “Suma Oriental” de Tomé Pires.
Neste último caso, que agora nos interessa, houve até, em 1514, troca de presentes entre el-rei Dom Manuel e o sultão Bolkiah, embora não haja notícia de fidalgo algum ter sido delegado para tal função. Nos registos oficiais consta, isso sim, o envio da armada de António Miranda de Azevedo nesse mesmo ano a oficializar as relações com as “ilhas do Maluco”, numa altura em que estaria já em marcha toda uma teia de “diplomacias e tratos paralelos” levada a cabo por privados, os tais “lançados” como “balas de canhão”, na feliz metáfora de Maethernik, protagonistas do denominado Império Sombra que sempre coexistiu com o oficial, antecedendo-o em muitos dos casos, sempre o precedendo por séculos a devir (até hoje) e cuja história continua por fazer.
António de Abreu – que em 1512 arribaria a alguns dos portos setentrionais de Java, entre os quais Gresik, onde foi erigido padrão, antes de demandar a Amboíno e Banda (dois padrões ali ficaram também) – foi o primeiro a navegar em nome do soberano português.
Interessa-me particularmente este aspecto da dita pequena história, bem mais interessante como matéria de investigação do que as “grandezas” das elites sempre prontas a abrir os cordões à bolsa a quem lhes tecesse loas e os eternizasse, a eles e aos seus actos, na glória. Afinal, o mundo não mudou assim tanto: é o que hoje, mais do que nunca, acontece.
Continua por fazer a história de toda essa gente marginal, os homiziados, os degredados, os padres tresloucados, os náufragos e até os traidores (não o foi também Magalhães?) que à sua maneira perpetuaram o nome de Portugal. Até hoje. Por exemplo, quantos textos holandeses foram vasculhados? Pelo que tenho visto, muito poucos, como poucas são as traduções de textos da época para outras línguas que não a holandesa, se bem que nesse domínio não seja de esperar grandes surpresas. Se os compararmos aos textos produzidos pelos viajantes ingleses e franceses do século XIX, ficaremos desiludidos. O mesmo não se poderá dizer das fontes dos países de origem, que continuam por estudar e longe estarão de secar.
Assim, poderemos considerar errado afirmar – embora seja desse modo oficialmente apresentada – ter sido a chegada da expedição de Fernão de Magalhães (1521) o primeiro encontro entre locais e europeus. Pelo menos a partir de 1511, uma década antes, portanto, é bem provável que grupos de portugueses, padres e tratantes, com meios próprios ou à boleia de terceiros, frequentassem tais paragens, justificando, de resto, o carácter pomposo da recepção feita pelo sultão do Brunei aos tresmalhados expedicionários ibéricos. Os locais viam neles possíveis parceiros comerciais. Aliás, uma passagem do “Roteiro” do piloto genovês deixa a entender isso mesmo: “julgavam que éramos portugueses”.
Houve nesse mesmo ano de 1521, por iniciativa do capitão de Malaca, Jorge de Albuquerque, sobrinho do “Terribel”, uma missão diplomática ao Brunei, primordial no apoio à viagem entre Malaca e as ilhas de Maluco; tendo sido na altura enviada uma outra à Cochinchina. Liderava-a Duarte Coelho, que deixou naquela costa do Mar do Sul da China um outro padrão atestando a primazia da chegada lusa. Ainda por iniciativa de Jorge Albuquerque, seria colocado, pelo seu sobrinho Henrique Leme, um padrão na foz do rio Cisadane, não muito longe do porto de Batem, em Sunda, o único, das dezenas colocados nesta parte do mundo, que resistiria à passagem do tempo. Repousa hoje numa das salas do Museu Nacional de Jacarta.
Na verdade, só a partir de 1522, com o estabelecimento de feitoria e fortaleza portuguesas em Ternate, no norte do arquipélago das Malucas, no decorrer da qual António de Brito, futuro capitão da dita, coloca novo padrão, “de mármore com as armas de Portugal”, em Banda, nas palavras do próprio, “um dos mais formosos e mores que se podem achar” – os padrões, recorde-se, eram sinais de posse e domínio – as visitas passariam a ser frequentes e cíclicas.
Joaquim Magalhães de Castro