O Regalismo
Hoje vamos abordar não tanto uma heresia ou cisma em si, mas o fundamento de várias divisões, fracturas e dilacerações na Igreja Católica na Época Moderna: o Regalismo. Este pode ser entendido como um conjunto de ideais, de teorias e práticas que suportavam o direito dos reis da Europa, desde a Idade Média, sobre determinadas regalias e direitos, ambos estes exclusivos dos reis, porque inerentes à soberania do Estado. Ou seja, o quadro de prerrogativas e direitos que as monarquias entendiam como suas e de direito privado, natural, principalmente os que chocavam com os direitos dos Papas, enquanto poder supranacional, universal e supremos sobre todos os reinos que se assumiam como católicos. Dito de outro modo, o Regalismo é uma forma de blindagem dos reis em relação a essa intromissão externa, ou uma sobreposição sobre a mesma. Claro está, criou tendências nacionais e acima de tudo conflitos com Roma e a Igreja.
O conceito de Igreja Católica Apostólica Romana, logo universal e supranacional, foi atacado por esta assumpção régia, que vários soberanos e ministros de Estado, como Pombal, assumiram nas suas governações e actos/exercícios de soberania. A doutrina da universalidade e transnacionalidade da Igreja e do poder do Papa era, pois, visada pelo Regalismo.
Na Idade Média, o fundamento do Regalismo, então ainda mal definido e sem articulação com um sistema político ou um conceito de Estado, era essencialmente económico, especificamente focado em estratégias reais avulsas ou de tentativa dos poderes reais de se sobreporem às jurisdições senhoriais ou nobiliárquicas, que fragmentavam o poder real, ainda pouco “central” então. Podemos antever, assim, já um “certo” regalismo na posição dos poderes imperiais contra o papado, como na Querela das Investiduras ou nos conflitos entre Guelfos e Gibelinos. A defesa da supremacia do poder civil, temporal, dos reis e imperador, sobre o poder espiritual, ou eclesiástico (Papas), é o mais evidente sintoma de regalismo medieval. Agostinianismo político, “teoria das duas espadas”, cesaropapismo, teocracia, são alguns dos conceitos e realidades que nos fazem relacionar o Regalismo com a Cristandade Medieval.
O Regalismo e o Absolutismo
Naquele tempo, existia uma figura estatal suserana sobre todas as demais na Cristandade: o Imperador, do Sacro-Império Romano-Germânico. Era o maior senhor temporal, tendo apenas como rival, em termos de poder, o Papa, que era supremo em termos de poder espiritual, mas com grande poder temporal ou secular. As monarquias feudais europeias, de forma a subtrair-se à suserania do Império, foram submetendo-se ao Papa, do qual se tornam vassalos e acabam por corporizar o senhorio espiritual da Santa Sé. A autoridade do Papa e dos seus poderes anexos, como as ordens religiosas, era aceite e espalhava-se capilarmente por toda a Europa, sem contestação.
Mas o Cisma do Ocidente (divisão da Cristandade em duas partes, uma fiel a Roma, outra ao “papa” de Avinhão) enfraqueceu Roma. Os reis intervieram, escolhendo fidelidades papais. As sanções, na forma de excomunhões, que ambos os Papas lançaram, perderam sentido e desprestigiaram a figura papal. Depois virá a Reforma Protestante, a partir de 1517, que criará igrejas nacionais no mundo luterano e na Inglaterra anglicana, com os príncipes à frente dessas. São “regalistas” no que toca ao controlo do poder eclesiástico pelo poder civil, mas o termo não se aplica às nações protestantes. Apenas é ligado às monarquias católicas. O Concílio de Trento tentará cortar pela raiz os laivos de regalismo na Cristandade Católica, mas de forma insuficiente.
Com efeito, a transição das monarquias europeias para o Absolutismo – principalmente a França – criou bases para o reforço das tendências regalistas (Galicanismo, Josefinismo…) e logo para o confronto entre reis e o Papa. Imunidades, retenção de bulas (não aplicação do seu teor dentro de alguns reinos), padroado sobre as igrejas e missões, são alguns dos sinais evidentes desse conflito regalista. O Regalismo em França terá a designação e forma de Galicanismo, a partir de 1681 (com Bossuet, in “Declaratio cleri gallicani”). O rei de França torna-se “chefe da Igreja de França”, na prática. Roma não intervém, evita o confronto, para não se repetir um cisma como o do Anglicanismo.
Em Espanha teremos também uma tendência regalista no século XVIII, embora já no século XVII os poderes reais em matéria eclesiástica fossem consideráveis. Controlo da Inquisição, direito de apresentação de bispos, padroado régio (nas Índias espanholas, também), percentagem da Coroa nos dízimos à Igreja… Mas só no século XVIII se geram conflitos com o Papa, que era acusado de ingerência nos assuntos internos de Espanha. Além de se encontrarem milhares de benefícios eclesiásticos em Espanha sem conhecimento da Coroa. Mas os acordos com Roma foram sendo efectuados e mitigou-se o regalismo espanhol. Em 1753 um desses acordos (concordatas) entregou ao rei de Espanha o padroado universal da Igreja nos domínios de Madrid no mundo. A expulsão da Companhia de Jesus do reino e domínios coloniais de Espanha, em 1767, é, todavia, a maior expressão de regalismo em Espanha, mesmo que anuída pelo papado. Mas não deixou de ser uma imposição regalista. Só em finais do século XVIII é que as tendências regalistas se esfumariam de Madrid.
Já a Coroa Portuguesa não deixou de restringir o poderio da Igreja ao longo da Idade Moderna, principalmente com o advento de novas ideias no século XVII e influências de outras coroas (Espanha, França). Com o Marquês de Pombal, muito influenciado por teorias jansenistas, febronianistas e episcopalistas, o regalismo português adquiriu uma crescente fundamentação teórica que lhe conferiram maior força e amplitude, conhecendo então o seu apogeu em Portugal, tanto no quadro das relações do Estado com a Igreja no País e Império Ultramarino, como em relação a Roma. Pombal pugnou no seu ministério por um reforço da centralização monárquica (despotismo esclarecido), pretendendo tudo submeter à Coroa e tudo afinar com os seus interesses, que eram simultaneamente os do povo português, dizia Sebastião José de Carvalho e Melo.
A Igreja em Portugal detinha um grande poderio material, imensos privilégios e um sem fim de imunidades, as quais considerava, o ministro, serem colidentes a perseguida centralização monárquica e com a desejada submissão dos diversos corpos da Igreja ao Estado, no que se incluíam as ordens religiosas, que seriam então alvos privilegiados das políticas regalistas que então se definiram e aplicaram. Como a expulsão dos Jesuítas, que o Marquês ordenou em 1759. A investida regalista da Coroa foi fortíssima em Portugal e seus domínios, principalmente contra as ordens religiosas espalhadas pelo império, alterando a tessitura eclesiástica do reino e ferindo indelevelmente a estrutura educacional e científica do País, que ficara tolhida pelas directrizes regalistas.
O Regalismo, em Portugal como nas outras monarquias católicas, foi mais uma bandeira política contra o poder e influência de Roma nos destinos desenhados pela estrutura absolutista que reinou na Europa, que mais não queria do que impor o poder dos reis até às esferas do espiritual. O tempo tudo diluiu e o Regalismo ficou tão só como uma memória….
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa