Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – XLX

O Galicanismo

Trento reformou a Igreja Católica. Reforçou e consolidou. De tal forma que a tentação de “nacionalizar” a Igreja se sobrepôs à unidade e à centralidade romana. Estava-se numa época de afirmação dos Estados, em pleno auge do Absolutismo, no século XVII. O Galicanismo surgiu nestes tempos, enquanto tendência autonomista da religião católica em França, principalmente, pois os seus ventos chegaram a outras paragens. Era uma questão de jurisdicção de Roma e do Papa que estavam em causa. O seu nome provém de Galia, a antiga denominação romana da França. Trata-se de uma concepção ideológica de tendência separatista, com origens no direito consuetudinário francês do século XV, que foi depois incorporado por Luís XIV no século XVII, a partir das ideias do grande teórico do absolutismo francês que foi Bossuet.

A sua matriz é absolutista, mais política que religiosa, portanto. Todos os poderes devem estar subordinados ou adjudicados ao rei, de forma a assegurar o bem-estar dos seus súbditos. Ou seja, o clero católico – ou a Igreja Católica em França (não da França!) – ficavam, de acordo com essa ideia, submetidos ao Estado. Para tal, redigiu-se mesmo uma declaração a exprimir a concepção galicana, publicada em 1682, com autoria atribuída ao próprio Bossuet: a “Declaratio cleri gallicani”. Assentava esta em quatro pontos essenciais: 1º, nos assuntos temporais, os reis são independentes da Santa Sé; 2º, promove-se o Conciliarismo, ou seja, o Concílio está acima do Papa; em 3º, o Papa deve respeitar as regras, costumes e leis do reino de França; por último, ainda que o Papa tenha a preponderância nas questões e matérias de fé, com os seus decretos a aplicaram-se a toda a Igreja e a cada igreja em particular, a sua magistratura ou juízos não são infalíveis ou irreformáveis, pois depende sempre do consentimento da Igreja. Uma ordem do Papa só era aceite se fosse reconhecida ou assinada pelo rei ou pelo parlamento de França. São as chamadas “Liberdades Galicanas”, declaradas solenemente por Luís XIV, em 19 de Maio de 1862, perante o clero francês. As mesmas posições seriam mais tarde oficialmente estabelecidas pela Revolução Francesa, na Constituição Civil do Clero, aprovada em 12 de Julho de 1790.

Para evitar a eclosão de um cisma, a Igreja condenou de forma mais moderada, sem excomunhões ou preposições mais radicais. A França era, apesar de tudo, uma antiga nação na Cristandade, de que foi sempre um pilar. Entre 1690 e o Concílio Vaticano I (1869-70) que Roma se pautou por prudência, mas sem concordância, naturalmente. As ideias galicanas foram com efeito condenadas neste concílio, definitivamente, na Constituição dogmática “Pastor Aeternus”, apesar de já alguns antes daquela reunião magna os bispos franceses terem refutado o Galicanismo. O decreto da Infalibilidade do Romano Pontífice imanado deste concílio seria também a imposição dogmática de condenação e encerramento definitivo do Galicanismo. Ou não, já que a tentação galicana nunca desapareceu, não apenas na França, diga-se…

 

Igrejas Nacionais?

O Galicanismo é acima de tudo um conjunto de tendências de ordem cultural, social, organizacional e litúrgica, promovidas pelo clero francês respaldado pela monarquia. Não se trata de uma heresia propriamente dita, mas antes de um desvio em relação a Roma, pois tinha como finalidade restringir o poder e as prerrogativas da Santa Sé frente ao poder dos Estados, então fortalecidos pelo Absolutismo. Estas tendências sempre existiram na Cristandade, não apenas em França, embora aqui tenham tido sempre maior eco. Desde o século XIII, com as disputas entre o Papa Bonifácio VIII (1294-1303) e o rei Filipe, o Belo (1286-1314), que impôs pesados impostos ao clero, sem permissão papal, tendo Roma intervindo. Logo o Papa excomungou Filipe e reafirmou a supremacia do poder espiritual sobre o temporal. Depois vem a doutrina conciliarista, que favorece sobremaneira o Galicanismo, como também as ideias que consideravam que em matéria jurídica os bispos e demais clero tinham em geral também a faculdade de não necessitarem da autoridade do Papa, uma vez que o seu ministério fora também outorgado por Deus, pelo que não tinham necessidade de mediação pontifícia. Estas ideias tinham forte aceitação já na Idade Média, prenunciando o Galicanismo.

O Absolutismo, ao impor a vontade soberana dos reis e a concepção de um Estado forte e blindado, coeso e uno, favoreceram o medrar das ideias galicanas, afirmando-se a independência das monarquias perante a autoridade eclesiástica, remetendo-se o papado para as matérias de fé. A Declaração de 1682 impôs ainda que as tradições e costumes da Igreja na França não poderiam nunca ser modificados por Roma, o que é por si o manifesto galicano mais premente. Depois do Jansenismo, o Galicanismo é a maior tempestade que a Igreja sofreu na França depois do Concílio de Trento (1545-63). Viveiro de espiritualidade renovada e pronunciada e activa reforma católica, a França não deixou também de experimentar estas derivas ou tendências desviacionistas ao nível eclesiástico.

O auge galicano deu-se, pois, no reinado de Luís XIV (1643-1715), o Rei-Sol, que clamava “L’Etat c’est moi! – O Estado sou eu”. Luís XIV tudo queria dominar, até a Igreja, o Papa, impondo humilhações e desgastando as relações entre Paris e a Santa Sé. O seu nacionalismo afirmou-se também ao nível eclesiástico com a deriva galicana. Senão atente-se no seguinte episódio. Em 1680 as religiosas de um mosteiro nos subúrbios de Paris preparavam-se para eleger legitimamente a sua superiora. Luís XIV, todavia, entendeu por bem impor uma superiora da sua escolha, mas de outra ordem religiosa. Perante isto, as religiosas apelaram para Inocêncio XI, que mandou proceder à eleição regular. Mas a bula papal para tal emitida foi rejeitada pelo parlamento francês. O rei resolveu então convocar uma assembleia geral do clero francês, que se reuniu em Paris de 1681 a 1682. Nesta, alguns prelados e principalmente o rei mostraram-se irritados com as sucessivas “intromissões” do Papa na Igreja da França, em particular de Inocêncio XI, que vinha brandindo com o soberano uma luta que punha em causa as relações entre Roma e Paris.

Os desafios de Luís XIV foram inúmeros, começando com o seu apoio à causa galicana… O clero leal ao rei considerava também que a intromissão papal era contrária a uma concordata de 1516, firmada com o Papa Leão X. Foi aqui que interveio o bispo de Meaux, Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704), redigindo, segundo se crê, os quatro artigos que impunham os limites do poder papal na França. Bossuet era um zeloso e fervoroso prelado católico, diga-se, grande pregador, mas era também um grande admirador de Luís XIV, tendo sido ele o ideólogo do absolutismo francês. “Todo o poder reside inteiramente na pessoa do rei, não podendo existir outra autoridade além da sua. Poder tão grande não emana dos homens, mas sim de Deus, que estabeleceu os reis para governar o mundo em Seu nome, os quais a mais ninguém senão a Ele devem prestar contas dos seus actos. Os súbditos devem ao rei obediência e respeito, que toda a desobediência é grave falta cometida contra Ele”. Mais absolutista não podia ser, como melhor justificação do Galicanismo não poderia existir. Mas o próprio Luís XIV abandonaria essa tendência….

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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