Bengala e o Reino do Dragão – 11

Em busca do palácio do Liquirinane

Ao convidar-nos a entrar no Hayagriva Madhava logo avisa o guardião tornado guia que será necessário mais tarde dar uns trocos ao brâmane-mor. Já no interior, chama-nos a atenção para um pilar partido, «devido a um terramoto», e para o local reservado ao sacrifício de animais (hoje aí se derrama leite de coco em vez de sangue), que «não se pode filmar». Insiste, no entanto, para que registemos imagens do poste danificado. Espera com isso sensibilizar o Governo da Índia, mais propriamente o «departamento da Arqueologia», para a urgência de uma pronta reparação. O homem certamente pensa que somos indianos de uma outra província, pois é em língua inglesa que os habitantes do vasto subcontinente comunicam entre si. «Já os alertámos para o problema, ah, mas ainda não nos ouviram, ah, pode tirar uma foto, ah, e mostrá-la ao Governo, ah, lá em Nova Deli. Se houver um terramoto, ah, toda a estrutura pode vir abaixo, ah, então, por favor, escreva lá isso nos jornais, ah, no The Times of India e no Hindustan Times, ah, e diga-lhes que visitou o templo e constatou que um dos dois pilares se encontra em mau estado, ah, e que é preciso fazer algo urgentemente, ah. Se fizer isso ficarei muito satisfeito, ah, tire, tire uma foto, por favor, ah. É um templo com mais de cinco mil anos».

Pouco mais há a realçar, tão-só, e em jeito de curiosidade, escondida a um canto escuro, uma engenhosa maquineta movida a motor destinada a tocar um conjunto de sinetas e um tambor que não temos oportunidade de ver em funcionamento pois está avariada. A nossa doação de 500 rupias tem de ser feita no exterior do Hayagriva Madhava e, como contrapartida, é-nos oferecido um nada comum prasad constituído por grão-de-bico, rebentos de soja e o habitual doce de ghee com arroz e açúcar.

Olhando em redor, por toda a área adjacente ao templo, é difícil de imaginar algo que se assemelhe ao faustoso palácio descrito por Estêvão Cacela quando nos fala da recepção oficial a que os portugueses tiveram direito: “Para falarmos ao rei de Liquirinane passámos três grandes pátios, que em roda tinha largas varandas cheias de gente, que em toda a parte pareceria mui luzida. De uns para os outros se passava por grandes portas e mui fortes que sempre estão fechadas com porteiros e muita gente de guarda. Nos dois últimos era grande a multidão de soldadesca que servia de guarda ao Rei e sempre ali assiste com muita ordem divididos em estâncias conforme as armas de cada um, sempre tão pronto e também providos como se estiveram em campo de guerra. Seguiu-se logo um grande e formoso jardim, no meio dele estava uma casa de prazer bem ornada onde nos esperava o rei”.

A paisagem em baixo, protagonizada por um meandro do rio quase encostado à falda da colina, cola bem com a carta de Cacela e o mais próximo que aqui temos da dita descrição é a coberta do templo adjunto ao Hayagriva Madhava, amplo espaço sustentado por colunatas onde um casal de peregrinos se ritualiza acompanhado do respectivo brâmane, como é da praxe. As estatuetas de um sadhu anónimo, de Shiva e de várias divindades budistas demonstram o quão ancestral e sincrético é este culto. Bem mais recente é a torre oval de óbvia traça mogol de cujas paredes sobressaem soldados armados em alto-relevo, um bom exemplo da arte naive local. Das duas uma, ou Estêvão Cacela exagerou, e muito, ou então o palácio situar-se-ia noutro sítio. Hipótese que me parece mais viável. Apesar dos esforços, a tentativa de identificar o poiso do rei do Cocho resulta em pouco mais do que nada.

Bir Narayan (1621-1626), filho e sucessor de Lakshmi Narayan, era um amante dos prazeres da vida que trocou o exercício da autoridade pura e dura pela cobrança de impostos ao rei do Butão. Durante o seu pacífico reinado patrocinou escolas para a elite aristocrata e apoiou os intelectuais. Este monarca, além de ter recebido Cabral e Cacela com toda a cordialidade, providenciou-lhes ainda as devidas autorizações (e considerável soma de dinheiro!) para poderem circular no seu reino sem nada temer. Curiosamente, os jesuítas teriam de retroceder de novo para oeste, onde se situava a cidade de Biar (Cooch Behar), administrada pelo filho mais velho do monarca, Pran Narayan. Só então, e com novos salvos-condutos, poderiam almejar a entrada no reino do Potente, pois assim se chamava o Tibete. Esclarece Estêvão Cacela que “(…) depois de várias práticas acerca do Reino de Portugal e de outras partes, tratando do nosso negócio, lhe pareceu fossemos a Biar onde governava seu filho Gaburassa, e que, dali a Runate, última terra sua, passaríamos ao Potente, oferecendo-nos cartas para o seu filho em tudo nos ajudar”.

A viagem dos jesuítas até Cooch Behar foi feita inteiramente por rio pois, como indica Cacela, concluindo este capítulo da jornada: “o Rei Satargit, além de nove peças de seda que nos mandou com grandes desculpas do estado em que estava incapaz de poder mostrar de outro modo o amor que nos tinha, e mandando um parente seu muito chegado que nos acompanhasse a quem para isso deu uma coca, dando-nos a nós outra, e mandando outro brâmane de sua casa com carta sua para o príncipe Gaburassa, se foi para Pandó e nós nos partimos para Biar”.

É curioso notar que todo o processo foi feito por etapas, e sempre com as devidas autorizações. Sem elas, nada feito.

Joaquim Magalhães de Castro

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