A Reforma Católica II
O centro de inspiração, de mudança e de actuação da Reforma Católica foi o Concílio de Trento. Por um lado, foi o ponto de chegada e o resultado de uma série de esforços, de tendências e de sensibilidades que vinham procurando a Reforma, fosse na hierarquia, fosse nas ordens religiosas, nas confrarias como na sociedade em geral. Mas foi também o ponto de partida da auto-reforma da Igreja, da reconfiguração do seu sistema teológico, da sua doutrina e espiritualidade, da disciplina e da acção, do clero como também dos leigos comprometidos. O esforço e empenhamento do Concílio de Trento serão tão grandes que durante quase quatro séculos constituirão a força interior e a referência da Igreja Católica. Conforme prometido, hoje vamos falar do que foi então o Concílio de Trento.
O Concílio em si não correu de forma fácil. Pelo contrário, foi problemático e podia ter “caído”. As dificuldades começaram logo na convocatória. Criadas por soberanos, as mais agudas, como Carlos V da Alemanha, Francisco I da França, ou até pelos príncipes luteranos. A guerra era a nota dominante, animada por interesses nacionalistas que marcariam também o arranque do Concílio. Mas também é importante realçar que nem a Cúria nem os Papas demonstraram muita motivação para encetar os trabalhos do Concílio, pois temiam que o poder lhes fugisse e ficasse mais arreigado aos concílios, acreditando que estes pudessem atacar a Igreja. As doutrinas conciliaristas eram ainda uma memória importante na Igreja. No tempo que passou desde as 95 Teses de Lutero, a Reforma Protestante conheceu uma forte expansão e tudo se tornou cada vez mais irreversível e difícil. O Concílio corria o risco de quando surgisse ser já tarde e para nada servir…
Foi Paulo III (1534-1549) o Papa corajoso a comprometer-se com o Concílio e com a reforma da Igreja. Foi ele que aprovou a instituição da ordem religiosa que é o símbolo da reforma da Igreja, a Companhia de Jesus. Foi este Papa que transformou o colégio de cardeais numa instituição mais culta e bem formada, de maior nível intelectual e moral. Além de reformas pontuais que empreendeu, Paulo III é o Papa de Trento. Se cedeu às pressões alemãs de lançar o Concílio em Trento, cidade imperial germânica, foi corajoso em fazê-lo numa localidade perto da fronteira entre a Europa fiel a Roma e a da Reforma Protestante. A geografia era importante já na época. Já não se podia reunificar a Cristandade, mas a reforma da Igreja era possível ainda.
Extirpar a heresia, reformar e unir
O Concílio teve três grandes grupos de sessões, ou períodos, já que cada um se dividiu em outras “sessões”: 1545-47; 1551-52; 1562-63. No primeiro período (1545-1547), celebraram-se dez sessões, promulgando-se os decretos sobre a Sagrada Escritura e Tradição, o pecado original, a justificação e os Sete Sacramentos em geral, além de vários decretos de reforma disciplinar; no segundo período (1551-1552), decorreram seis sessões, continuando a promulgar-se, simultaneamente, decretos de reforma e de doutrina ainda em torno dos Sacramentos, particularmente sobre a Eucaristia (a sempre debatida questão da transubstanciação), a Penitência e a Extrema-Unção. As guerras, porém, entre Carlos V e os príncipes protestantes, além dos ataques que este imperador alemão sofria dos franceses e dos turcos no Norte da Itália (onde se situa Trento…), constituíam um perigo para o Concílio, que se suspendeu durante dez anos. O terceiro período (1562-1563), entretanto convocado pelo Papa Pio IV (1559-65), foi presidido pelos legados cardeais Ercole Gonzaga, Seripando, Osio, Simonetta e Sittico. Neste período realizaram-se nove sessões, em que se promulgaram importantes decretos doutrinais, mas sobretudo decretos eficazes para a reforma da Igreja. Assinaram as suas actas 217 padres oriundos de quinze nações. Neste último período foram convidados representantes da Igreja Anglicana a estarem presentes.
Recorde-se que falamos aqui muitas vezes de poderes seculares no Concílio de Trento. Porque foram de facto importantes e determinaram os trabalhos. Por exemplo, Carlos V impunha uma reforma directa da Igreja, uma actuação imediata de ataque aos protestantes. A Igreja pretendia antes disso a definição de uma base doutrinal, de um aparelho teológico capaz de ser a base para a Reforma. As duas teses seriam tratadas, mas o Concílio foi convocado para extirpar a heresia, reformar a Igreja e unir os cristãos. Clarificou doutrinas até então menos claras, mas aqui um pouco por reacção às críticas de Lutero e Calvino. Mas não houve diálogo com estes grupos protestantes, pelo que não se interessaram pela reforma que o Concílio pretendia e logo ali morreu em definitivo a unificação. E enterrou-se definitivamente também o Conciliarismo e toda a eclesiologia que este pressupunha: o Papado era a partir de agora o núcleo vital da Igreja.
Um dos aspectos que importa aqui salientar foi o da reforma litúrgica de Trento. Esta assentou, e assenta, na exaltação da presença real da Eucaristia, pela devoção aos santos, pelo reconhecimento da missão da Igreja de ensinar tanto no púlpito como na catequese, além da recuperação do Domingo como o dia do Senhor e da paróquia como célula base da instituição e da vida cristã, lugar de encontro da comunidade por excelência.
O Concílio foi de facto decisivo e também corajoso. Pôs, por exemplo, o dedo em três antigas chagas da Igreja, que a minava e enfraqueciam: a ignorância e má formação do clero mas também do povo; a divisão do clero e o seu crescente distanciamento em relação ao povo; e a submissão do clero ao poder secular, laico, que era também crescente.
Para o Concílio se impor no seu desiderato de reforma e tocar no mundo, obviamente que as ordens religiosas – as novas ou as antigas entretanto reformadas – foram essenciais, como já aqui vimos, sendo também um exemplo da vitalidade da Igreja antes de Trento ou para lá do Concílio. Ou seja, as suas células operativas estavam já no terreno a trabalhar pela Reforma, mas sem dúvida que Trento insuflou um alento reformador irreversível. E duradouro. Atente-se que, por exemplo, os decretos tridentinos e os diplomas que serão produzidos depois do Concílio foram as principais fontes do direito eclesiástico durante mais de três séculos, até à promulgação do Código de Direito Canónico em 1917.
Sem consensos, unidades ou reunificação, sem fórmulas unânimes entre todos os cristãos ou sem discussão, sequer, o Concílio reafirmou e clarificou, essencialmente, os princípios católicos, além de condenar o protestantismo. A moral e a disciplina foram também visadas. E muito se fez, sem dúvida. Reergueu-se e revitalizou-se a Igreja. Que se veja, nesse sentido, o triunfo do Barroco, “para maior glória de Deus”!
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa