Bengala e o Reino do Dragão – 8

Rumo ao reino do Cocho

A viagem dos jesuítas rumo ao reino do Cocho foi feita pelo Bramaputra, ou por algum dos seus afluentes, rio acima, presume-se, numa embarcação de tamanho considerável. É que os padres levavam com eles objectos vários, entre os quais pesadas peças de artilharia. O facto, porém, não é mencionado uma única vez no relato de Estêvão Cacela. Iremos a essa questão mais adiante.

Os rios eram as principais estradas da época. Ademais, entre Bengala e a capital de então do reino de Cocho, no presente Estado indiano do Assam, estendia-se uma cadeia montanhosa parte integrante da província de Meghalaya. Todo o trajecto estava sujeito ao pagamento de taxas cobradas em postos estrategicamente colocados ao longo dos esteiros e canais. Uma vez mais a acção do capitão Jorge de Sousa mostrar-se-ia fundamental. Foi ele quem providenciou os bengalis que acompanharam os padres e os ajudaram a passar as alfândegas, cujos funcionários não deviam ser nada fáceis de convencer. Assim reza a prosa da “Relação” de Cacela: “(…) viemos acompanhados dos homens da gente que Jorge de Souza para esse efeito mandou, e nos serviu muito para poder passar os choquis, que são como alfândegas onde se vê o fato, e se paga dele um tanto, e são sessenta e tantos nestes rios até Azó, indo sempre por gangas mui frescas e aprazíveis de muito boa água e com as muitas povoações que lhe ficam junto, abundantes de tudo”.

Mudam os tempos, mudam as circunstâncias. Para chegarmos ao nosso destino recorremos ao voo da Jet Air para Guwahati, capital do Assam, cidade onde não se vislumbra um único estrangeiro. Nem sequer no átrio ou restaurante do hotel da prestigiada cadeia escandinava onde pernoitámos. Talvez possam explicar essa ausência os problemas sociais e conflitos entre etnias que sempre marcaram o Assam e a Meghalaya, Estados que só há poucos anos permitiram a livre circulação a estrangeiros sem lhes requerer autorizações especiais ou sujeitá-los a pesadas restrições. Estávamos em véspera de eleições e uma ida às urnas nestas paragens é quase sempre sinónimo de distúrbios. Frequentemente há feridos e mortos. Ficámos, por isso, algo ansiosos. Era nosso objectivo fazer o trajecto por terra, seguindo à vista, pelo menos parcialmente, o longo trajecto fluvial percorrido por João Cabral e Estêvão Cacela na sua épica jornada.

Os mitos e a história de Guwahati remontam há vários milhares de anos. Embora se desconheça a data exacta da sua fundação, as referências nos épicos – Puranas e quejandos – levam a crer que seja uma das mais antigas cidades da Ásia. Fontes epigráficas identificam-na como sede dos domínios de Narakasura e de Bhagadatta, personagens míticas do clássico religioso Mahabharata. Como vestígios de tais épocas e lendas temos o templo Shakti, dedicado à deusa Kamakhya, na colina de Nilachal (importante assento do Budismo tântrico), e o templo astrológico (único no género) de Navagraha, no monte Chitrachal, assim como vestígios arqueológicos vários em Basistha e noutros locais. A moderna Guwahati faz parte de um lote de 98 cidades indianas, ditas “smart cities”, onde será implementado um projecto de modernização que garantirá – promete o Ministério do Desenvolvimento Urbano do Governo da Índia – “fornecimento eléctrico regular e contínuo, um sistema de tráfego e transporte de primeira linha, cuidados de saúde superiores e tecnologia digital de ponta”.

Nessa noite não nos foi possível acompanhar o jantar com vinho tinto, como tem sido hábito, pois em véspera de eleições, por mera precaução, as autoridades locais decidiram interditar o consumo público de bebidas alcoólicas em toda a província. Convém lembrar que os patrocinadores desta nossa expedição – os empresários Gonçalo Bello, da Just Wine, e Júlio Videira, da Sabalar, que nos acompanham, a mim e ao Pedro Sousa, operador de câmara – fizeram questão de levar algumas garrafas de vinho para o promover nas planícies hindustânicas e nos contrafortes dos Himalaias. Afinal, nada que esteja deslocado do propósito da viagem, pois também os padres transportavam com eles doses medidas dessa bebida. Aliás, o néctar dos deuses era produto obrigatório em todas as afoitas embarcações lusitanas que ao longo dos séculos ousaram enfrentar as correntes marítimas e as alterosas vagas, sujeitas aos mais caprichosos humores da mãe-natureza. Guardado em tonéis, era tão precioso quanto a água, o biscoito ou a carne seca. Servia para enganar a fome e a sede e também para distrair o espírito, relegando para o canto mais recôndito da massa cinzenta o terrível medo, fraqueza comum a todos os mortais. Só os deuses não temem.

Ao ver o Gonçalo puxar do saca-rolhas, correu o empregado do restaurante até à nossa mesa a rogar-nos, muito polidamente e até com algum embaraço, que não o fizéssemos, explicando de seguida o porquê da interdição. Logo considerou, o Gonçalo, tudo aquilo um grande sacrilégio – onde já se viu uma refeição sem um copo de tinto? – e de imediato sugeriu que fossemos almoçar para o quarto, onde livremente pudemos celebrar a nossa chegada ao Assam com um aragonês alentejano (se calhar dos vinhedos próximos a Avis, a terra onde nasceu Estêvão Cacela) que aveludou o caril de frango bem apimentado, a ementa dessa noite.

Joaquim Magalhães de Castro

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