A Reforma Católica I
A Reforma Católica, também vulgarmente conhecida como “Contra-Reforma”, é a designação que se atribui ao movimento de reforma da própria Igreja, há muito exigido, tentado, mas não consumado, antes “ultrapassado” pela Reforma Protestante, no tempo e no modo, no caso de ruptura quase cismática. A Reforma Católica não é em si apenas uma reacção, é acima de tudo um projecto unitário e com vista à universalidade, sem divisões ou secessões. Iniciou-se na prática em 1545, com o arranque do Concílio de Trento, que encerraria os trabalhos em 1563.
A Reforma Católica é, poder-se-ia dizer, uma aceleração da reforma em si, da Igreja, que passará a designar-se como Católica Apostólica Romana, em ordem à sua universalidade e sentido de missão e abrangência do mundo. Mas acima de tudo é a mais importante tentativa de superação do contexto de decadência disciplinar e institucional da Igreja, amplamente evidenciada pela Reforma Protestante, reflexo do clamor de renovação que há muito vibrava nos corredores eclesiásticos. A par de Lutero, de Calvino, temos reformadores contemporâneos destes na Igreja, na fidelidade a Roma. O Papa Adriano VI, por exemplo, ou o cardeal Cisneros (1436-1517), em Espanha, personificação dos intentos reformadores da Igreja no seu país, que faziam aliás parte do aparelho de medidas e reformas definidos pelos Reis Católicos, Fernando de Aragão (1479-1516) e Isabel de Castela (1479-1504).
Uma explicação antes de mais. O termo Contra-Reforma é uma tradução do Alemão “Gegenreformazion”, avançado em 1776 pelo jurista alemão J. S. Püttner, para designar o regresso pela força à prática católica de um território reformado (protestante, portanto). É por muitos usado para definir o que se designa como Reforma Católica, ou seja, o período tridentino (do concílio homónimo, 1545-63) e pós-tridentino na história da Igreja Católica (1563-1700). Por a luta contra os Protestantes ter sido uma realidade nesse período, muitos optam pelo termo de Contra-Reforma. Mas como não se tratou de uma contra-ofensiva, ou de uma mera reacção, mas sim a continuação e intensificação da reforma da Igreja, que já vimos se começara bem antes do Concílio Tridentino.
A Reforma na Igreja
Com efeito, para além de Cisneros em Espanha e de Nicolau de Cusa (1401-64) no mundo alemão, poderíamos citar vários movimentos reformadores na Igreja, bem-sucedidos e de grande impacto. Nos quais se destacam, sem dúvida, as ordens e congregações religiosas, o primeiro laboratório de experiências reformadoras da Igreja. Poderíamos recordar logo a acção reformadora no Carmelo por Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz, nos respectivos ramos. Renovação espiritual, institucional, de observância mais estrita e também de usos e costumes, paralela a outras instituições. Como os Franciscanos (Cisneros era um franciscano, por exemplo) e os Beneditinos (um exemplo são os eruditos Mauristas, da congregação francesa de St. Maur), além dos Cistercienses por João Baptista de la Barrière, abade de Notre-Dame de Feuillans, ou dos Trapistas, por Rancé, abade de Notre Dame de la Trappe; os Agostinhos, por exemplo, foram também reformados por Pedro Fourier, tal como os cónegos regulares de Prémontré (Premonstratenses), por Lacruels (Lairvelz). As ordens e congregações serão não apenas exemplos de reforma mas também agentes e factores da mesma.
Bastaria recordar o baluarte da reforma em si e do Concílio de Trento, a Companhia de Jesus, aprovada em 25 de Setembro de 1540 por Paulo III. Os Jesuítas, fundados por Santo Inácio de Loyola, seria de facto a milícia eclesiástica reformadora e fiel a Roma que mais importância teve na Reforma Católica, não apenas na Teologia, mas também nas artes, na cultura, na educação, na ciência e nas missões. Defesa da fé, mas também propagação da mesma, eram alguns dos escopos da intuição fundadora da Companhia.
Na Itália as inquietações por uma renovação cristã eram fortes desde há muito, desde o início do século XVI. Por isso, também ali nasceram, para dar resposta e actuar no sentido dessas inquietações, além da educação, da doutrina, da assistência e da missão, novas ordens ou congregações religiosas. Como os Teatinos (1524), os Capuchinhos (1525), os Somascos (a primeira casa foi em Somasca, 1528), os Barnabitas (1534), os Oratorianos, de São Filipe Néri e do Cardeal Bérulle (1524), os Oblatos de Santo Ambrósio (1570), idealizados por Carlos Borromeu, as Ursulinas (1535), de Angela de Mérici, em Bréscia, entre muitas outras organizações religiosas, clara evidência da renovação da vida espiritual e do ânimo reformista na Igreja Católica neste período. Por aqui poderemos perceber o sentido mais pertinente da expressão Reforma Católica, que tem mais acuidade e sentido que a reactiva Contra-Reforma.
Em 1545, a Igreja Católica Romana convocou a reunião que foi o Concílio de Trento (na cidade italiana de Trento) para se empreender e cumprir normativamente e de forma universal a reforma há muito iniciada. Estabeleceram-se, entre outras medidas, a reinstalação do Tribunal do Santo Ofício, a criação do Index Librorum Prohibitorum (o célebre Índex) – que definia uma relação dos livros proibidos pela Igreja – e o forte estímulo à evangelização dos povos das novas regiões conquistadas ou “descobertas”, nas Américas, África, Ásia e Oceânia. Neste âmbito, as novas ordens religiosas, em que se destaca a Companhia de Jesus, foram efectivamente importantes. Outras resoluções saídas do Tridentino incluíram a reafirmação da autoridade papal, a manutenção do celibato eclesiástico, a reforma das ordens religiosas antigas, a edição de um catecismo (dito tridentino), reforma e instituição de seminários de formação de presbíteros, criação e reforma de universidades, a supressão de abusos envolvendo indulgências e a adopção da Vulgata Latina como tradução oficial da Bíblia, limitando-se assim outros intentos de poliglossia das Sagradas Escrituras. A Reforma Católica marca uma nova etapa da reforma do clero, secular como regular, embora este desiderato estivesse há muito em prática. No caso do clero secular, a criação de seminários foi decisiva para a formação de sacerdotes e renovação da disciplina e costumes. A pregação paroquial assegurada foi outra vitória, bem como a proibição de acumulação de benefícios.
Fez também o Concílio frente e deu respostas à Reforma Protestante? Também, mas não se pode dizer que só fez isso, ou que só reagiu; também há que referir que não deixou de responder em alguns pontos. Mas tal não deslustra ou retira o sentido da Reforma Católica. De facto, as discussões e decisões tridentinas deram à Igreja uma maior unidade e coerência dogmática, permitindo-se assim uma melhor resposta às questões teológicas e controvérsias. A Igreja acima de tudo era um manto de retalhos de teses e tradições, de desorganização teológica e ausência de um discurso unívoco e coerente. As controvérsias, recorde-se, prendiam-se com o pecado original e a doutrina da Justificação, a relação entre as Sagradas Escrituras e a Tradição, o significado dos Sacramentos e da presença de Cristo na Eucaristia. Com Trento vai-se, pois, dar o grande passo de renovação e reorganização da Igreja, que passa a ser Católica, Apostólica e Romana. Mas houve mais reformas e reformadores, em Trento e na Cúria, como veremos na próxima semana.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa