O perigo da desintegração da Igreja
Muitas vezes as divisões nasceram de fervor de fé ou apego às tradições. Da querela chegou-se rapidamente à discussão e a rupturas. Eram necessários equilíbrios e pontes. Ninguém melhor que um “fazedor de pontes” – pontifex em Latim, ou pontífice… – para dirimir e ultrapassar questões e evitar que se transformassem em divisões. Já aqui falámos de São Gregório I Magno. Antes do Ano Mil, tempo de conturbação, impõe-se recordar de novo a sua acção em prol da unidade e da luta contra a desintegração, ou fracção, da Igreja, uma unidade plural e transnacional, multiétnica e plurilinguística, tendente muitas vezes à fragmentação. Unir era o imperativo e impunha-se, cada vez mais. Porque cada vez mais era também difícil.
Um exemplo desta tendência radica uma vez mais em Constantinopla. Sede de bispado que aspirava a mais na geografia eclesiástica, principalmente em relação a Roma e alicerçada que estava na crescente tendência autonomista do Oriente cristão. A grande e fulgurante cidade do Bósforo (estreito entre o Mar Negro e o Mar Egeu, que separa Constantinopla em duas partes, europeia e asiática) vincou as suas pretensões eclesiásticas sempre nas relíquias de Santo André, apóstolo, irmão de Pedro, o primeiro Papa e primeiro dos apóstolos, que convocara o irmão para seguir o Mestre. Pedro, a personificação, por assim dizer, do Ministério Papal (Petrino) de Roma…
Bom, neste contexto surgiu – ou forjou-se?… – a lenda de que Santo André consagrara o primeiro bispo de Bizâncio (pretensamente, Estácio, bispo entre 38 e 54), ou que até fora o primeiro bispo… De acordo com Hipólito de Roma, André pregou na Trácia, sendo a sua presença também assinalada em Bizâncio no apócrifo “Atos de André”, escrito no século II. Esta diocese desenvolveu-se e transformou-se, “grosso modo”, na de Heraclea, junto da futura cidade de Constantinopla, fundada até 330. Esta acabará por se tornar depois no Patriarcado de Constantinopla. André é, por isso, considerado como seu fundador. Claro, nada melhor que o irmão do fundador da diocese de Roma, Pedro, para estar na origem da diocese “rival”, dir-se-ia…
Era a primeira semente de futuras e conhecidas divisões. Mas, como o bambu que fica uns anos na terra até nascer, esta semente ficou submersa no correr dos tempos, até surgir e fracturar a Igreja. Até lá, pouco mudou, até porque o imperador bizantino Focas, em 607, promulgou um édito, a favor do Papa Bonifácio III, em que declara que a Sede Apostólica de São Pedro seria a cabeça de todas as Igrejas, enfatizando o prestígio do primado já reconhecido universalmente. Embora algumas sementes se mantivessem na “terra”… O que diferia mais Roma e Constantinopla até então eram as psicologias colectivas, as personalidades e mentalidades, aspectos culturais e linguísticos, não questões doutrinais de fundo. Para já…
FAZENDO-SE PONTES
As mais de 800 cartas de São Gregório Magno, valoroso Doutor da Igreja, atestam a sua vontade e acção na concertação no seio da Cristandade. Escreveu a imperadores, reis, arcebispos, bispos, governadores e administradores, de toda a área geográfica da Igreja. O seu tom era de amigo e igual, mas sempre com a convicção de sublinhar quem é o sucessor de Pedro e que possui a missão de confirmar os seus irmãos. Por outras palavras, centralizar e unificar a Igreja, evitar dissensões e fragmentação. Por outro lado, legitimou e organizou a administração das propriedades da Igreja no mundo conhecido, criando o “Património de Pedro”, a base dos futuros Estados da Igreja.
À partida pode-se achar esta decisão pouco religiosa ou mais institucional e material. Mas não: o objectivo é o de organizar, unificar e dar exemplo de estabilidade e bases de acção. Pois existia o perigo da desintegração na época. De fragmentação, diga-se, do Cristianismo em várias igrejas germânicas, nascidas do afã missionário e evangelizador após a queda do Império Romano do Ocidente em 475. Era preciso pois congregar religiosamente essas “igrejas” na Igreja mãe de Roma, evitando as tendências autonomistas da cultura germânica. Outra semente que ficará para tempos vindouros… Por isso, Roma decidiu que a evangelização do Centro e Norte da Europa devia ser uma tarefa do Papado, romana portanto. Não à mercê dos esforços ou actos por vezes autónomos de bispos ou monges. Deveria haver uma concertação romana, como preconizara já São Gregório Magno.
DO IMPÉRIO AO PAPADO
O Papa era cada vez mais a figura que “substituíra” temporalmente o imperador romano. A conversão dos povos germânicos organizada por Roma foi dessa transição um claro sinal e um elemento formador. Roma convertia-se cada vez mais no pólo de atracção e gravitação do mundo ocidental, afastando-se de tendências fragmentárias ou de divisão, de autocefalias ou autonomias fracturantes. Era pois uma Igreja una e coesa, centrada no Ministério Petrino do Papa romano. Daríamos aqui o exemplo de Santo Agostinho de Cantuária (Canterbury), que quando chegou à Grã-Bretanha para ali missionar encontrou tantos desafios, questões, dúvidas e exigências pastorais que acabou por ir a Roma pedir instruções e apoio, de uma forma natural e processualmente organizada. Quem lhe respondeu e ajudou foi o próprio Papa, precisamente São Gregório Magno: as suas respostas serão um autêntico e valioso manual pastoral para os missionários dos séculos seguintes, até aos jesuítas no séc. XVI, pelo menos.
Unir e lutar contra as divisões e cismas é o mote da nossa reflexão de hoje. Para melhor avaliarmos esta temática em epígrafe, nada melhor do que também avaliar as lutas e esforços para evitar esses cismas, divisões, ou como os prevenir e combater. É importante enfatizar que esses mesmos só surgirão quando na Igreja, institucional, existirem brechas e fraquezas que permitirão que simples questões ou dúvidas se transformem em diatribes, controvérsias, rupturas e cismas, heresias e excomunhões radicais. A visão e actuação de Gregório Magno, ou a humildade e sapiência de Agostinho de Cantuária, tiveram uma importância histórica para a posterioridade. O Papa, em antecipação secular, propusera que se tivesse em conta a observância da cultura e costumes dos povos a evangelizar. Veja-se o modernismo e visão, mil antes da “acomodação” jesuítica, de um Papa anterior ao Ano Mil, o que evitou divisões e querelas, como se viu. O direito romano, o monaquismo e as escolas fariam o resto da acção preventiva contra divisões.
Mas estas não deixaram de surgir, de crescer e muitas das sementes que caíram na terra acabaram por nascer e, perante a fraqueza da instituição, criaram divisões.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa