Cartas do Bornéu – 6

A cidade de pedra

Kota Batu, antiga capital do império do Brunei, não passa hoje de um parque arqueológico, ao que constato, e infelizmente, muito pouco frequentado, com a vantagem de ter como extras, nas proximidades, três unidades museológicas bastante interessantes e com entrada gratuita. Pena que o Museu Nacional, onde poderia encontrar alguma informação ou objectos relativos ao que se pode designar como “período português do Brunei”, esteja encerrado para obras de restauro, já lá vão alguns anos. Junto ao rio, o moderno Museu Marítimo é parcialmente patrocinado pela petrolífera francesa Total, financiadora das pesquisas subaquáticas da equipa de arqueólogos que em 1997 revelariam e resgatariam os despojos de um junco chinês naufragado ao largo da costa do Brunei, provavelmente o mais importante achado arqueológico do sultanato. Uma porção do espólio (num total de 13 mil e 500 artefactos), no essencial peças de cerâmica de origem chinesa, siamesa e vietnamita, pode ser apreciado na sala principal onde existe também uma réplica do dito junco. Nas velas desse “ersatz” de embarcação, impressa relevante informação histórica tendo como fundo um mapa de todo o Sudeste Asiático, datado do século XVI e repleto de vocábulos portugueses, de resto, como tantas vezes se vê. Na região central das ilhas Celebes chama-me a atenção o nome “Portugal”. Por que motivo assim foi designada essa região se noutros mapas similares e coevos tal não acontece? Será porque considerou, o cartógrafo, semelhante à do seu país natal a paisagem que ali foi encontrar?

A uma centena de metros, o Museu de Tecnologia Malaia é uma pérola museológica à moda antiga, com réplicas de diversos tipos de arquitectura tradicional das díspares tribos autóctones – os Kadayan, os Dusun, os Murut e os Punan – em tamanho real, assim como exemplos de diversas profissões, algumas já extintas. Do ferreiro ao pescador e suas mil-e-uma tipologias de redes; da tecedeira ao produtor de sagu; dos espremedores de cana-de-açúcar aos ourives. Sai-se de lá com uma ideia do panorama etnográfico do País. Entre alfaias agrícolas e gongos de bronze, no chão de bambu coberto de esteiras de uma das cabanas, deparo com quatro lantacas, de diversos tamanhos e feitios. De salientar, numa montra envidraçada, merecedora de destaque, uma quinta lantaca com corpo e boca de dragão, design típico do sultanato.

A chegada dos “destroços” da frota de Magalhães, vindos da ilha filipina de Palauan, ficou marcada por uma violenta tempestade que deflagrou no exacto momento em que, após percorrerem algumas milhas ao longo da costa, decidiram os expedicionários lançar a âncora. “O céu escureceu e vimos o fogo de São Telmo nos nossos mastros”, escreve Pigafetta.

Como era prática comum dos navegantes da época, descoberto um estuário de rio logo por ele se subia em busca de um porto. Foi o que fizeram os dois navios sobreviventes da expedição circum-navegatória, no já distante ano de 1521: era a chegada inicial de europeus à grande ilha do Bornéu.

Num desses barcos seguia Sebastião Elcano, afortunado fidalgo que com todos os louros da expedição ficaria não fora a honestidade do cronista Pigafetta que em bom tempo o “denunciou” junto de Filipe II, dando o seu a seu dono. Morto o pobre do Magalhães e a maioria dos tripulantes que sempre se mostrara fiel, fossem eles portugueses, espanhóis ou de outra qualquer nacionalidade, não havia mais ninguém merecedor de credibilidade (a opinião de simples marinheiros, grumetes ou soldados não era tida em conta nessa época) para contar a verdade, expondo assim quem miseravelmente tentava cobrir-se de glórias alheias. Malgrado a canalhice, Elcano tem hoje o nome imortalizado na popa do magnífico navio-escola da Marinha espanhola que regularmente sulca os oceanos do planeta. Recordo-me de ver, aqui há uns anos, num recanto de Tidore uma placa assinalando a sua passagem por essa ilha de especiarias, nas Malucas, acompanhada de alguns dados históricos acerca dos “feitos” do espanhol. Sobre o Magalhães, nem uma palavra. A verdade é que os nossos vizinhos, apesar da gigantesca empreitada levada a cabo pelo pequeno grande homem de Sabrosa jamais foram capazes de reconhecer Fernão como um deles. Tinha um grande defeito: era português.

Coincidência ou não, o certo é que o nome do conspirador Elcano, esse mesmo que nas costas da Patagónia, com outros da sua laia, feridos no orgulho por navegarem às ordens dum estrangeiro, quase puseram em risco o sucesso da expedição. O almirante português, num acto magnânimo, perdoou-lhe a vida, permitindo que prosseguisse viagem; e até a estrelinha da sorte dar-lhe-ia uma ajuda, conduzindo-o, a ele e a uma dúzia mais, sãos e salvos de regresso a casa.

Pois bem, Elcano não é tido nem achado nas informações disponíveis aos visitantes do Brunei, tão pouco o é o eleito chefe da expedição após a morte de Magalhães, o mui peculiar e polémico João Lopes de Carvalho, dito “Carvalhinho”, que merecerá atento relato numa próxima crónica. Em Kota Batu ou em Bandar Seri Begawan, nos panfletos turísticos e nas placas informativas só vemos o nome de António Pigafetta, que nos é referido como “viajante” e “académico”, quase sugerindo que o homem navegava por conta própria, e, claro, salientando sempre a similaridade – pasme-se – da capital lacustre do império do Brunei com Veneza. Já perdi a conta às cidades do Oriente que têm sido comparadas a Veneza.

Apesar do parque arqueológico de Kota Batu (literalmente, “cidade de pedra”) se circunscrever a uns meros cinquenta hectares, facilmente se passa ali um dia agradável. Isto, graças à generosa copa do arvoredo. Aliás, o parque é também uma espécie de reserva de biodiversidade, misto de mangal e densa floresta tropical. Húmido, muito húmido. Tão húmido que o chão de cimento do trilho mais parece um ringue de patinagem no gelo, muito por conta do musgo acumulado e a falta de solas que o percorram. Todo o tempo que ali estive, e foram muitas horas, não me cruzei com uma única criatura. Para atenuar o calor nos troços a céu aberto, goles de água frequentes e, para repor os níveis de açúcar, sumo de tamarindo. Bem melhor saberia se estivesse bem gelado.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *