Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – VIII

As heresias e divisões no século V

Temos neste espaço reflectido sobre as heresias dos primeiros séculos do Cristianismo. As divisões geradas, os cismas dilacerantes, as fracturas e controvérsias. O Ocidente, como o Oriente, viveram estes acontecimentos de forma quase dramática, dada a importância do fenómeno religioso nesses tempos. Nem sempre ultrapassados, antes radicalizados, todos estas querelas ajudaram a fortalecer a fé de uma Igreja que se impunha cada vez mais. O Papa Gregório I, já vimos, foi um dos que mais lutou. Mas no seu tempo, nos séculos V e VI, na transição para a Idade Média, que heresias e controvérsias subsistiam, ou surgiram?

Em jeito de ponto de situação, atentemos assim ao estado geral da Igreja entre os séculos VI e o ano mil, uma Igreja gradualmente dividida entre Oriente e Ocidente, progressivamente minada por vezes por heresias e questões de fé.

O Pelagianismo surgido no século V estava ainda vivo, afirmando o pecado em que vivia o mundo só pelo facto da herança de Adão e das comunidades de pecado em que se vivia. O homem pode chegar ao céu pelos seus meios, defendia Pelágio, necessitando assim da Graça de Deus, facilitando aquilo que de outra maneira seria uma tarefa muito complicada. De forma idêntica, mas com diferenças, subsistia também desde o século V o emi-Pelagianismo. Este era uma versão modificada do Pelagianismo, o qual fora de tal modo refutado por Santo Agostinho de Hipona. Em suma, este movimento redundou numa heresia, pois afirmava que os seres humanos se podem aproximar de Deus pelas suas próprias capacidades e sem ajuda da Graça. Qualquer um pode permanecer nesse estado pelos seus próprios esforços sem mediação da Graça divina. Trata-se de um conceito teológico estribado na crença de que o esforço humano natural por si mesmo pode dar o direito ao homem de receber a Graça, apesar de não ser algo meritório, defendiam.

De forma persistente, subsistia o Nestorianismo, também, o qual aliás vai permanecer durante séculos. A negação do estatuto de Theotokos a Maria era uma nota saliente na segunda metade do primeiro milénio, entre os nestorianos, que declaravam que Maria apenas fora portadora no seu ventre da natureza humana de Cristo e, portanto, não era Mãe de Deus. Por isso propuseram o título alternativo de Christotokos (“que leva Cristo”). Os teólogos orientais, ou “ortodoxos”, reconheceram que a teoria de Nestor fraturava Cristo em duas pessoas separadas, numa unidade desligada, recorde-se. Muitos historiadores acreditam que não terá sido assim que Nestor se pronunciara e que ele não acreditaria nessa conclusões que outros tiraram das suas proposições, mas o debate continua.

Ainda do século V permanecia o Monofisismo, como uma reacção ao Nestorianismo, chegando mesmo a manifestar-se horrorizados com aquele. Passaram ao oposto, afirmando que Cristo era uma pessoa com uma única natureza e que fundia em si o divino e o humano. Ambas negavam a plena humanidade e a plena divindade de Cristo, todavia.

 

Outras heresias

Um delas foi a Iconoclastia, activa nos séculos VII e VIII. Os iconoclastas são os que “destroem ícones” (imagens), afirmando ser um pecado fazer pinturas ou esculturas de Cristo e dos Santos, mesmo que Deus tivesse ordenado nas Sagradas Escrituras que se fizessem imagens religiosas (Ex 25,18-20; 1 Cr 28,18-19; Nm 21,8-9 com Jo 3,14).

O Apolinarismo foi outra das heresias menos conhecidas desta época, desenvolvida por Apolinário de Laodiceia (século IV), a partir da escola de Antioquia. Atacou primeiro o Arianismo, que negava a condição divina de Cristo. Apolinário contrapôs que Cristo não podia ser um homem pleno, completo, posto que para estar livre de todo o pecado deveria ter que ter uma alma adicional. Queria apenas afirmar o princípio da unidade do Logos incarnado mas derivou para estas posições heréticas. Como a sua dedução de que Cristo era um ser intermédio, derivado da união substancial entre Deus, o Filho e um corpo inanimado. Acreditando por isso que deixava a salvo a santidade do Verbo perante o pecado. Extinguiu-se com o tempo, principalmente depois da condenação pelo Papa Dâmaso em 377 e depois no Concílio de Constantinopla de 381.

Outra heresia menos conhecida mas não menos retumbante e “curiosa” foi a dos “Circoncilianos”, uma comunidade que surgiu no século IV e que se caracterizava por defender a interpretação literal das Sagradas Escrituras, além da rudez das suas acções. Pregavam um igualitarismo radical, de forma a livrar o homem da sua escravidão. Permitiam a participação na administração da propriedade e a posse dos bens dos seus amos, além do perdão de dividas, mesmo usando a violência. O suicídio era visto de forma normal, ou melhor, como equivalente ao martírio. Além de promovido como forma de libertação do jugo das autoridades. Foram reprimidos, mas alguns subsistiram, embora sem destaque no seio da Igreja.

Alfobre de fé, a Igreja foi também viveiro fecundo de heresias, como se pode ver. Teríamos que recordar por isso os Euquitas, da Turquia, que defendiam a união (hipostática) entre Deus e o homem justo, tal como a união entre o Demónio e o homem pecador. Praticavam ritos excêntricos, que os tornaram famosos, além de exorcismos. No século V estava em vias de extinção.

Outro grupo dissidente foi o dos Donatistas, surgido no século IV, com Donato, um bispo do Norte de África. Em reacção por parte de alguns bispos às perseguições imperiais dos inícios do século IV, que fizeram alguns deles entregar os exemplares que detinham das Sagradas Escrituras. Os seguidores de Donato acusaram-nos de traidores. Defensores da pureza, pretendiam, os Donatistas, salvar a Igreja. Consideravam-se perfeitos, ou santos, negavam o valor dos sacramentos dos sacerdotes “inimigos”, movendo a oposição imediata de Santo Agostinho, que os criticou asperamente.

Muitos mais movimentos surgiram, muitas mais controvérsias também. Os debates estavam acesos, mas importa recordar, como o faremos, outras heresias e cismas, muitos deles peculiares e singulares, mas eivados de contradições.

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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