Terras de exclusão, terras de abrigo
O Canadá é um vizinho diferente relativamente à nova América que Donald Trump “inaugurou”, essa novíssima pátria americana, de exclusão e não de asilo, como tem sido sua tradição há mais de dois séculos.
E pergunto-me porquê. Qual a razão desta atitude tão distinta perante os refugiados, quando ambos os países são afinal produto sociológico e cultural da mesma gente, pessoas “vindas de fora”, todas em busca de uma vida digna, em porto seguro?
Desde as perseguições religiosas às convulsões políticas, desde a fuga à pobreza extrema no solo natal ao sonho milionário de encontrar o tesouro que mudará tudo, são infinitas as razões pessoais que conduziram à América do Norte sucessivas vagas de seres humanas, de cuja coexistência, na diversidade, se foi moldando a alma canadiana e a personalidade americana.
Não conheço o Canadá. Todavia, conheço gente nossa que lá trabalha e adoptou aquela terra como uma segunda pátria. Mas em Nova Iorque e em Washington apercebi-me, em escalas e com perspectivas diferentes, a diversidade do mundo, na Grande Maçã, e a diversidade da América, na capital do poder.
Canadá: paisagem tranquila, país sereno?
Claro que perante uma América poderosa e tantas vezes dominadora, o Canadá (perdoe-se-me a imagem que pretende ser apenas lírica, elegíaca e não desprimorosa) faz figura de uma enorme Suíça, de vaquinhas a pastar, perto da auto-estrada movimentada que leva a outra galáxia…
O Canadá não é um país perfeito, porque os países perfeitos só existem na cabeça delirante dos utópicos visionários. Por isso no Canadá há racismo, xenofobia, sexismo, islamofobia, anti-semitismo, anti-catolicismo, etc. etc. etc. – todos esses rótulos que correspondem a outros tantos venenos da convivência respeitadora entre pessoas diferentes.
Recordo, para o ilustrar, o atentado no Quebec de há três semanas contra uma mesquita, por um radical de direita (também lá os há!) que matou seis pacíficos crentes e feriu outros oito, quando estavam a rezar.
Mas não sendo perfeito, o Canadá não tem essa proliferação de centrais do ódio organizado que se exprimem nos numerosíssimos episódios de tensão racial, de lutas entre gangues armados (porque a Constituição é uma vaca sagrada e não “pode” ser revista na sua Segunda Emenda) e com frequentes abusos de autoridade policial à mistura, tudo isto constituindo situações de que os políticos se aproveitam no momento do voto.
Enquanto o Canadá vive, de facto, na normalidade de um quotidiano que se pretende sem história, nos Estados Unidos moram, pelo contrário, esses múltiplos fantasmas, sempre presentes: internamente, grupos há que rejeitam, ainda hoje, o cimento progressivo, formado por várias gerações, com os ricos contributos da diversidade, grupos que recusam tal legado e que absurdamente aspiram a não sei que superioridade racial; externamente, os fantasmas do polícia do mundo, da nação indispensável, da nova Jerusalém que é luz do mundo em tempos de tribulação.
É um país onde a pluralidade impõe um reinventar permanente das relações entre indivíduos e entre comunidades, praticando de forma constante não direi o relativismo de crenças e valores, mas a aceitação das crenças e valores dos outros.
Ora, não sei com que ideia peregrina, há grupos que não estão dispostos a tal exercício, porque a História é feita por eles e para eles. E é essa convicção que conduz, noutro registo, ao sentido do peso histórico, essa falsa consciência de um destino especial, forjado no ser-se quem se é, na versão actualizada do poema de Rudyard Kipling, “The White’s man burden”.
As nações têm, naturalmente, o direito aos seus mitos fundadores, onde muitas vezes convicções de superioridade e destinos de salvação messiânica mal se escondem e mal se disfarçam.
Sem defender a amnésia dos povos sem história, convenhamos que, em tempos de globalização do conhecimento, esses mitos têm de ser fatalmente as vítimas, porque no horizonte deve estar uma nova compreensão do ser humano, no seu conjunto. E da sua caminhada em conjunto na História.
Mas tomemos os mitos da nação americana literalmente: mais uma razão para Trump não ter quebrado a tradição do acolhimento! E apostar na hospitalidade de uma América serena e confiante. Onde se ouviu isso nos discursos de comício do candidato e nas intervenções do Presidente, de viva voz e em vivos twitters?
Será esta atitude política de exclusão, apanágio exclusivo de uma certa elite e por si manipulada para fins próprios – que torna o poder arrogante, ao ponto de secar as raízes de uma certa concepção de humanidade?
Porque explorar medos colectivos não é novo na História dos homens. E os tempos actuais têm-se prestado, como muita gente sabe e denuncia, a confusões ardilosas que condenam ao mesmo tempo vítimas e algozes.
Daí que cada crente muçulmano seja um terrorista do ISIS em potência. E cada jovem de aparência mediterrânea (e com barbas…) seja visto como um bombista suicida encapotado, à espera da sua hora…
Mas falemos de líderes políticos nos dois países. Para além da juventude e de uma educação política que lhe vem do pai, que tem Justin Trudeau que Donald Trump não tem, de modo a cultivar a abertura em vez da exclusão?
Só pode ser, creio eu, uma atitude existencial diametralmente diferente, caracterizada pela confiança nos seus concidadãos e no seu país. Nos seus concidadãos, como veículos de valores. No seu país, como produto do esforço colectivo de conduzir à prática tais valores.
Atitude onde predomina por isso o optimismo da gente nova, porque há um futuro a construir. E onde sobressai a confiança ilimitada na capacidade dos homens e mulheres do Canadá, a construírem largos consensos para que todos possam caber.
Gémeos de pais diferentes, esses dois países vizinhos? Perdoe-se-me a imagem mas só ela me ocorre, quando oponho dois retratos.
Um país de braços abertos. Outro, a construir divisões de arame farpado!
Carlos Frota
Universidade de São José