Os primeiros cismas
A Igreja sofreu permanentemente divisões, cismas e heresias, quase desde os seus alvores. Algumas destas questões ou controvérsias foram fáceis de resolver, dirimir, mas outras mantêm-se até hoje. As suas causas foram múltiplas, nem sempre doutrinais. As controvérsias cristológicas, por exemplo, foram a causa de muitas divisões, debates, polémicas. Os concílios de Niceia, Éfeso e Calcedónia procuraram solucionar os problemas em debate, mas muitas vezes acabaram por criar confrontos e cisões. Com efeito, na realidade as diferenças não eram apenas doutrinais, mas também culturais, étnicas e políticas.
O Nestorianismo, como já vimos, foi uma dessas cisões, enquadrada nesta multicausalidade. Atingiu a Índia ocidental (Malabar), penetrando nas ilhas de Socotorá, na entrada do mar Vermelho, e do Ceilão (actual Sri Lanka). A primeira referência a uma igreja na Índia, mais concretamente no Malabar, remonta ao séc. IV, com as comunidades cristãs da região a reivindicarem a sua origem na pregação do apóstolo São Tomé (ou Tomás), que por ali terá andado. Os nestorianos colaram-se a essa tradição, mesclando-se com as comunidades cristãs malabares. A Pérsia (actual Irão) e a Mesopotâmia (actual Iraque) foram atingidas por esta corrente cristã, que se tornou mesmo como a doutrina oficial dos cristãos persas, principalmente do séc. VI, na sequência do encerramento da escola teológica de Edessa e das migrações nestorianas para aquele reino.
Mais a ocidente, surge a igreja siro-ocidental, ou jacobita, de origem monofisita. Esta corrente foi apoiada pela imperatriz bizantina Teodora (c. 500-548), esposa do grande imperador Justiniano, no “século de ouro” de Constantinopla. Aquela igreja foi com efeito apoiada por Teodora, disseminando-se, de forma organizada, pela Síria, Arménia e Ásia Menor. É uma igreja anti-calcedónica, usa o Siríaco como língua litúrgica e teológica, dando maior ênfase ao monaquismo, cenobítico ou anacorético (eremitismo). Estes jacobitas acolheram muito bem a invasão muçulmana, por exemplo, no séc. VII, devido ao ódio que nutriam pelos gregos ortodoxos. Por aqui vislumbramos já as diferenças étnico-políticas… Por outro lado, e tal como os assírios nestorianos, a igreja jacobita manteve o primitivo rito de Antioquia, o mais antigo da história do Cristianismo, antes dos de Constantinopla ou Roma.
No Cáucaso
Os arménios foram sempre ciosos das duas prerrogativas étnico-linguísticas e nacionais, mantendo uma forte autonomia e unidade como povo. Fosse sob o domínio bizantino, fosse sob persas ou muçulmanos. A alma desta unidade e autonomia foi sempre o Cristianismo. Que no fundo marca a identidade do povo arménio. No séc. V o bispo Mesrop criou o seu alfabeto, o que permitiu traduzir a Bíblia, o rito litúrgico de São Basílio e todo o sacramental para língua arménia. O Cristianismo arménio usa por exemplo o pão ázimo, uma das suas peculiaridades. Tal como o facto de não acreditarem no purgatório, não misturarem vinho e água na Eucaristia ou festejarem o Natal a 6 de Janeiro. Junto à Arménia outra peculiar cristandade surgiu na Geórgia, região onde o Cristianismo se implantou quase nas suas origens. As suas raízes são pois fortes e longevas, num país onde a doutrina monofisista a partir do séc. VII foi abandonada.
Em África
Uma outra cisão surgiu no Nordeste de África, no Egipto milenar. Os coptas, cristãos que se identificam etnicamente com os antigos egípcios, defenderam tenazmente a sua fé, primeiro contra Roma ou os Gregos, depois e até aos dias de hoje contra o Islão, dominante no País. Rejeitaram as decisões do Concílio de Calcedónia (duas naturezas na única pessoa de Cristo; condenação do monofisismo) e seguiram de forma inequívoca o Patriarca de Alexandria, o qual por sua vez nunca se submetera à autoridade, que nunca aceitara, do Patriarca de Constantinopla, que já de si se afastava cada vez mais de Roma e desenhava o futuro Cristianismo oriental ou dito “ortodoxo” (ou bizantino).
No princípio, o poder ou base do cristianismo copta assentava no seu monacato, que atingiam na segunda metade do séc. VII, aquando da invasão árabe, a importante cifra de meio milhão de monges! Mais a sul, na Etiópia, uma cristandade surgiu no séc. IV, mantendo-se fielmente também sob a autoridade do Patriarca de Alexandria. O cristianismo etiópico é na essência austero e formalista, com uma quaresma de cinquenta dias e jejuns obrigatórios às quartas e sextas-feiras até às três da tarde. Não se pratica também a confissão, salvo em situações de perigo de vida.
Se a tendência de Constantinopla era a de afastamento progressivo em relação a Roma desde o séc. III, também se verificou uma separação gradual de muitas igrejas orientais em relação à sede constantinopolitana, dita “ortodoxa”, ainda que todas essas se declarem assim também. Mas muitas delas não deixam de representar uma fidelidade – ou tentativa de – em relação às fontes do Cristianismo e de desejo de conservação da tradição, embora à margem da tendência “oficial” de Roma, ou mesmo de Constantinopla. Mas, por exemplo, não deixaram de incorporar e manter costumes muito antigos das culturas onde se implantaram ou de outras circundantes. Por exemplo, os coptas mantiveram até alguns costumes cerimoniais que remontavam ao Egipto faraónico.
Constantinopla cada vez mais longe
Uma nota a fechar, para encadearmos com as próximas edições. Constantinopla, fundada no sentido de se criar uma divisão administrativa no império romano (Ocidente e Oriente), tornou-se rival de Roma, impondo-se como nova capital, ou tentando-o. O bispo de Constantinopla, por exemplo, nunca se conformou apenas com este título, reivindicando o de Patriarca, enfrentando Roma e o Papa, às vezes de forma dura. Constantinopla era a “nova Roma”, o que constituía um motivo não religioso, pois esta separação não será apenas religiosa. Será também cultural, mental, pois não apenas a língua separa as duas metrópoles, ou a composição étnica, mas também a psicologia colectiva, as mentalidades, importantes nas relações de convivência e na unidade, mas aqui mais dilacerantes e distintivas. A questão religiosa apenas começou a consumar essas diferenças. Como veremos…
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa