O Puritanismo – III
O dogma central do Puritanismo foi sempre a autoridade suprema de Deus sobre todos os assuntos dos homens. Deus tem um poder absoluto e inquestionável sobre a humanidade, para os puritanos. A Graça de Deus é que pode reformar e salvar o homem. A cada indivíduo, Deus mostrará a sua misericórdia, mas antes cada pessoa tem que assumir e dar-se conta da sua falta de valor, na sua pequenez e por isso deve confiar no perdão que reside em Cristo e que lhe foi dado, de forma gratuita. Por isso, deve ser humilde e obediente. Em suma, são estes os eixos dogmáticos dos puritanos desde sempre.
São os mesmos que todos os cristãos assumem, ou pretendem seguir. Mas a diferença reside, em boa parte, no modo e nas práticas, singular e colectivamente, de viver estes dogmas e crenças. Por exemplo, logo à cabeça, todos os puritanos devem dar um ênfase ao estudo e reflexão, privados, da Bíblia, o guia indispensável da vida de qualquer crente. A Igreja, ou a comunidade dos crentes, deve reflectir, no seu todo e na sua práxis, os ensinamentos expressos nas Sagradas Escrituras, aos quais deve estar umbilicalmente ligada. Ao mesmo tempo, têm o desiderato de que todos os membros das suas comunidades alcancem uma educação, ilustração, formação enfim, o mais avançada possível. A literacia é um escopo de vida importante para todos, especialmente para que todos possam ler e interpretar a Bíblia por si próprios. A crença inquestionada da salvação individual de cada um depender apenas de Deus é basilar no Puritanismo, que assenta numa sociedade unificada, unívoca e que funciona como um corpo só, irmanado e focado no mesmo desígnio.
UM SACERDÓCIO UNIVERSAL
É talvez um dos pontos mais identitários dos puritanos, a crença de que todos os crentes são sacerdotes, ou podem e devem sê-lo. Obediência, disciplina, contenção, rigor e humildade devem ser vividos de forma consagrada, sacerdotal. No culto, a sobriedade e reserva deverão ser também uma pauta a observar, prezando-se a simplicidade na adoração, nas vestes para o culto, numa quase aniconia (recusa de imagens), além da dispensa de suso de velas e de outros objectos. A austeridade é a palavra de ordem, individual e comunitária, com um regramento e disciplinas levados a um plano quotidiano, em todas as dimensões da vida. A celebração de festividades tradicionais tornou-se proibida, por se considerar, entre os puritanos, que violam os princípios que regulam uma adoração plena, contida, sem excessos nem exteriorizações consideradas supérfluas. A guarda obrigatória de um dia da semana, conforme os Dez Mandamentos, tornou-se uma marca dos puritanos, considerando o Domingo como o dia da Ressurreição de Jesus. Muitos aprovavam ainda a hierarquia da Igreja, enquanto outros pretendiam reformar as igrejas episcopalistas segundo o modelo presbiteriano. Os puritanos, de essência separatista, adeririam de facto ao presbiterianismo, em boa parte, enquanto outros derivaram para o congregacionalismo.
Os puritanos acreditam que a humanidade está totalmente dependente de Deus no caminho da salvação. Como os anglicanos e também os seguidores de Lutero e Calvino, acreditavam que a reconciliação com Deus, justo e misericordioso, é algo como um dom da sua graça recebida pela fé.
Mas os puritanos deram também contribuições distintas para a ideia geral de salvação, no sentido das igrejas reformadas. Defendiam um “estilo” claro, sóbrio, de pregação, como se mostrou nos sermões magistrais de John Dod (1555-1645) e William Perkins (1558-1602), os quais foram expressamente concebidos para simplesmente apontar o largo e fácil caminho da destruição e da condenação, por oposição ao caminho apertado para o não menos estreito portão do céu, da salvação. Os puritanos colocaram também uma nova ênfase no processo de conversão. Em textos e diários de líderes puritanos, como Thomas Shepard (1605-1649), evidencia-se o processo lento, e muitas vezes doloroso, pelo qual Deus levou os fiéis da rebelião à obediência. O conceito de salvação é também referido em termos de “aliança”. Nas notas da Bíblia de Genebra fazia-se finca-pé numa aliança pessoal baseada na Graça, pela qual Deus prometeu a salvação aos que exercitam a fé em Cristo. E é sempre pela Graça que essa fé, com base no sacrifício da morte de Cristo, define os eleitos da salvação. A ideia da aliança estará na base da emergência de uma organização de igrejas, visível no crescimento do congregacionalismo nos Estados Unidos, que preconiza a estruturação da sociedade no amparo de Deus (Massachusetts, Connecticut, por exemplo).
Como os primeiros reformadores puritanos ingleses, também muitos dos seus continuadores, como já vimos, acreditavam, e acreditam, piamente, na suprema autoridade da Bíblia. O uso das Escrituras, no entanto, logo se tornou também numa grande causa de desavenças entre os puritanos e os seus oponentes, fossem eles anglicanos ou até mesmo puritanos. Muitos sectores puritanos, anglicanos, de facto, estavam firmes na crença de que a autoridade da Bíblia não era absoluta e total. Muitos puritanos chegaram a argumentar que os cristãos deveriam fazer apenas o que a Bíblia ordena. Os anglicanos, por seu turno, argumentavam que os cristãos não deveriam fazer o que a Bíblia proíbe. A diferença é subtil, mas profunda, tendo criado discussões acesas e questionamentos continuados. Entre os puritanos, as consideráveis diferenças recairiam essencialmente sobre o que as Escrituras exigem, especialmente em relação a assuntos relacionados com as igrejas (comunidades). Muitos puritanos lutaram por um Estado presbiteriano, enquanto outros por uma organização congregacional, em ligação ao Estado. Uma outra facção defendia que a Bíblia em si mandatava as igrejas congregacionais a existirem separada do Estado, como foram o exemplo dos congregacionalistas independentes e dos baptistas nos Estados Unidos. Na Inglaterra o descordo reinava em relação ao controlo ou não do rei em relação aos bispos, foco de tensão que conduziu a fracturas graves no Puritanismo Inglês.
Mau grado todos os debates e dissensões, fracturas e questionamentos, o Puritanismo persiste até aos dias de hoje, involucrado nas correntes religiosas reformadas de matriz calvinista ou então diluído, subliminarmente muitas vezes, noutras denominações e espiritualidades, quase sempre de matriz protestante. Mas não só, pois acaba por ser uma conotação de integrismo ou rigor noutros credos, tocando até na Igreja Católica e, fora do mundo das religiões, na esfera política e social.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa