CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CXIX

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CXIX

A Teologia da Libertação – IV

O auge da Teologia da Libertação ocorrerá nos finais dos anos 60 e na década de 70 do século XX, esmorecendo a partir de então, entrando mesmo em declínio. Mas vejamos a evolução histórica deste movimento teológico e social na Igreja, desde os seus antecedentes. Estes podem sintetizar-se, para além do já exposto anteriormente, na influência da Teologia Dialéctica (ou da Crise), a partir da Teologia Confessante, dos teólogos protestantes Karl Barth (1886-1968), Emil Brunner (1889-1966), Dietrich Bonhoeffer (1906-1944) e Martin Niemöller (1892-1984), que defendiam que Deus estava sempre do lado dos humilhados, contra a tirania e a opressão dos poderosos. Esta nova corrente tocará fundo na Nova Teologia (Nouvelle Theologie) em França, alimentada pela escola dominicana do convento do Saulchoir, em Paris, a partir de figuras como os padres Dominique Chenu e seus discípulos Yves Congar e Edward Schillebeeckx, este último autor de um livro referencial para a Teologia da Libertação: “Para uma Igreja serva e pobre” (1963). Também em França despontaram os chamados padres operários, agentes de uma pastoral activa imbricada no mundo laboral e nas massas operárias.

Numa via também erudita, temos ainda em França as intervenções do jesuíta Henri de Lubac e outros teólogos da Companhia de Jesus, a par da criação da Missão de França, pelo cardeal Suhard, inspirada na acção e exemplo dos sacerdotes dominicanos Loew e Fauvre. A Missão de França seria a instituição de enquadramento eclesial do movimento dos padres operários, que depois alastraria a Espanha e à América Latina, onde teve forte impacto em países como o Brasil e a Argentina. Neste último, mergulhado numa ditadura militar opressiva e cruel, uma das maiores vozes da Teologia da Libertação foi o padre secular Carlos Mugica, assassinado pelo regime em 1974, mesmo sendo filho de um antigo ministro peronista. No Brasil, a figura do arcebispo de Olinda e Recife, D. Hélder Câmara, é a marca do pioneirismo da intervenção social da Igreja no mundo, na forma mais compaginada com a Teologia da Libertação, numa acção de denúncia e combate da pobreza que se tornaram marcas do movimento. Outras figuras surgirão, como o franciscano Leonardo Boff, como veremos, ou, dentro dos movimentos sociais que surgem no maior país da América Latina, novas ideias e formas de luta, como a teoria da dependência ou a pedagogia do oprimido de Paulo Freyre, ainda hoje vigente no Brasil em muitos sectores da educação.

NOS ANOS 60 E 70…

O despontar quase “oficial” do movimento foi o denominado Pacto de las Catacumbas, um documento redigido e assinado a 16 de Novembro de 1965 por cerca de quarenta bispos católicos, a maioria deles latino-americanos, que se encontravam nesse momento a participar na quarta sessão do Concílio Vaticano II, que já estava próximo do seu encerramento. O documento foi assinado depois de uma eucaristia nas Catacumbas de Domitila, perto de Roma, tendo recebido depois também a assinatura de outros bispos. Por isso, se chama das Catacumbas, este pacto em que os bispos signatários se comprometiam a adoptar uma vida de simplicidade despojada de posses, bem como uma nova atitude pastoral orientada para os pobres e para os trabalhadores. O documento foi considerado como um dos antecedentes da Teologia da Libertação, que se implantaria na América Latina de forma plena a partir de 1969.

De facto, a definição teológica e programática da Teologia da Libertação vincou-se entre 1968 e 1971. Assim foi como o culminar de todo um processo, como se viu, na sequência de um conjunto de obras teológicas e sociológicas que foram dando forma ao movimento. O primeiro desses textos fundadores foi o “Função da Igreja” (“Función de la Iglesia”, no original), do teólogo uruguaio Juan Luís Segunmdo, publicado em 1962. Depois seria a vez de Rubem Alves, pastor presbiteriano brasileiro, que em Maio de 1968 defendeu, no Seminário Teológico de Princeton, nos Estados Unidos, de forma retumbante, a sua tese de doutoramento intitulada “Para uma teologia da Libertação humana: uma exploração do encontro entre as linguagens do humanismo messiânico e do messianismo humanista”. Em Junho de 1969, o sacerdote católico peruano Gustavo Gutiérrez publicava um folheto com reflexões teológicas que formulara numa conferência proferida em Chimbote em 1964, que recebeu o título “Para uma teologia da libertação”. Seria este o título que denominaria o movimento e que o poria em marcha como corrente teológica, sob o signo da libertação, recebendo uma difusão enorme na América Latina mas também na América do Norte, onde os ecos foram inúmeros e o impacto grande entre os teólogos, tal como viria a desencadear noutros continentes. Rubem Alves publicaria a sua tese também em 1969, mas com um título diferente da dissertação, mudado pela editora: “Uma teologia da esperança humana”. Este título foi censurado e proibido no Brasil, que estava mergulhado numa ditadura militar desde 1964, tendo sido reeditado em 1985. Em 1971 viria a lume “Teologia da Libertação: perspectivas”, da autoria do citado padre Gutiérrez. Este livro seria traduzido para diversas línguas, alcançando sete edições em vários países no ano de 1975.

O processo tornou-se imparável, dir-se-ia. A Teologia da Libertação gerou uma onda de acolhimento e entusiasmo maior que a recepção do próprio Concílio Vaticano II. A adesão era crescente. Assim, em 1969, na Argentina, os teólogos Lúcio Gera, Rafael Tello e Justino O’Farrell seriam determinantes na Declaração de San Miguel do episcopado argentino, dando origem à “Teología do Povo”, uma das vertentes mais importantes da Teologia da Libertação, que influiria fortemente no sacerdote jesuíta Jorge Bergoglio. Em Novembro desse ano, Lúcio Gera redigiria o “Documento do Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo” (MSTM), em oposição ao Governo de Juan Carlos Onganía, com o MSTM a enfrentar o ditador que então governava a Argentina. Pôs-se mesmo em marcha um projecto libertador cuja matriz era o Evangelho. Do outro lado do Rio da Prata, no Uruguai, o teólogo protestante Júlio de Santa Ana, referência do movimento “Iglesia y Sociedad en América Latina” (ISAL), fundado em 1961, publicava o seu primeiro livro, “Cristianismo sem religião”.

Entretanto, em 1970, o já citado Rubem Alves publicava, também no Uruguai, em Montevideu, a obra “Religião: ópio ou instrumento de libertação?”, com prefácio de José Míguez Bonino, famoso teólogo protestante argentino, um dos fundadores do ecumenismo, em 1967, numa publicação histórica, “Concílio aberto: uma interpretação protestante do Concílio Vaticano II”. O tema “Êxodo e Libertação” será o motivo para uma reunião de biblistas nesse ano em Buenos Aires, que seria um momento definidor da Teologia da Libertação. Como o foi o artigo “Teologia da Libertação”, do bispo argentino D. Eduardo Pironio, nesse ano ainda, prelado esse que será um dos líderes da Teologia da Libertação. Mas apareceria também um movimento mais radical, os Montoneros, organização guerrilheira católica, peronista, que tinha vários sacerdotes católicos nas suas fileiras, até um capelão….

Vítor Teixeira 

 Universidade Católica Portuguesa

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