A identificação do arquipélago
Ao contrário do que acontece com os restantes países asiáticos, o contributo luso para o conhecimento da geografia e características culturais e etno-antropológicas das Filipinas e seus diversificados habitantes tem sido praticamente ignorado. Já Tomé Pires, devidamente informado em Malaca, mencionara a existência dos luções, “todos eles gentios”, que viviam a “dez dias de navegação” da ilha do Bornéu. Era a primeira vez que entre europeus se falava de tal gente. Especifica o boticário viajante, na profícua e sumarenta “Suma Oriental”, que o dito povo não tinha rei, somente se regia “pelos mais velhos em cabilas” e era gente robusta, embora “de pouca valia”. Ou seja, não era propriamente gente de comércio. Acrescentava ainda Pires que não eram muitos os juncos, “até dous, três”, nos quais transportavam a mercancia obtida no Bornéu. Pese a informação precoce desta realidade sócio-económica e a sua proximidade geográfica com as ilhas ricas em especiarias, mais a sul, o arquipélago das Filipinas nunca suscitaria grande interesse comercial, precisamente pela ausência das ditas especiarias.
A propósito da morte de Fernão de Magalhães escrevia o capitão António Galvão no seu refúgio abundante em noz-moscada, maça e cravinho: “no arquipélago de São Lázaro, em uma ilha que se diz Sebu e Nata foi o Magalhães morto e a sua nau queimada. As outras duas foram ao Bornéu e daí a Mindanao”. Se exceptuarmos as várias dezenas de portugueses que integravam a expedição castelhana comandada pelo percursor da circum-navegação, a primeira visita oficial ao arquipélago que viria mais tarde a ser conhecido como Filipinas mas que o navegador português dedicaria a São Lázaro, protector do enfermos e necessitados, acontece com a viagem de Simão de Abreu, algures entre 1523 e 1526, portanto, um período não muito distante da passagem da armada de Magalhães. Num universo geográfico onde a iniciativa da Coroa rivalizava quantas da vezes, e até nas situações de conflito, com a iniciativa privada, é díficil apontar uma data para a chegada oficial lusa ao arquipélago. Abreu, nessa sua viagem de reconhecimento em busca de uma nova rota entre Malaca e as ilhas da especiarias, via o Bornéu, terá muito provavelmente feito aguada numa das milhares de ilhas que compõem o belo arquipélago. O relato é feito, uma vez mais, por António Galvão: “No ano de 1523, o mês de Maio, mandou António de Brito, que estava por capitão de Maluco, a Simão de Abreu seu primo, a saber o caminho de Bornéu para Malaca. Houveram vista as ilhas de Manada [Menado, no extremo norte na ilha das Celebes (Sulawesi)], Panguensara [ilhas de Likoepang]. Foram pelo estreito Dantreminao e Taguina [ou seja, entre as ilhas de Mindanao e Basilan] e as ilhas de São Miguel [Cagayan sul], que estão sete graus de altura da parte do norte e daí decorreram a ilha do Bornéu, e toda a sua costa. Houveram à vista da Pedra Branca [na parte oriental da entrada do estreito de Singapura], passaram pelo estreito foram ter à cidade de Malaca, deixando muitas ilhas, mar e terra por ali sabidas”.
Não se sabe se tocaram terra, mas esta terá sido, aparentemente, a primeira navegação oficial em águas territoriais desse arquipélago. Outros cronistas refereciariam essa viagem, embora poucas informações adicionais fossem acrescentadas. Fernão Lopes de Castanheda, por exemplo, explica que ela se justificava por ser “mais breve do que a da ilha de Banda”, e, por essa razão, mandara o capitão Brito esse seu parente. O melhor comprovativo da eficácia da rota é o facto de Abreu ter chegado apenas um mês depois de “Dom Garcia Anrique, que fora pela vida de Banda, e havia onze meses que partira de Ternate”. Tão pouco há grandes informações acerca da viagem protagonizada por Jorge de Menezes, também ele utilizador do caminho do Bornéu, que passara a substituir a habitual devido à dificuldade de navegação provocada pela presença de inúmeros ilhéus. De resto, essa sua jornada, em 1526, levá-lo-ia a terras mais distantes, sendo-lhe atribuída a descoberta da Papua Nova Guiné. Nota João de Barros: “por outras muitas ilhas, de que este mar é muito sujo, chegou à de Bornéu, ao porto da cidade”. À semelhança de navegantes anteriores, também Menezes enviou presentes ao sultão, e o sultão a ele, tendo depois o português prosseguido caminho por muitas ilhas e restingas, “que estão na paragem do Bornéu, coisa mui perigosa e que se não pode navegar senão de dia, com um marinheiro na gávea, vigiando os baixo, sem ter mais notícias deles”.
Também Barros anuncia a passagem de Menezes pela “ilha de São Miguel” e Mindanao, só que em sentido contrário ao trajecto cumprido por António de Abreu. Escreve ele: “como aqui os ventos e as águas em Outubro e Fevereiro cursam muito contra leste, os pilotos escorrerem à ilha do Moro, a que também chamam Batochina [ou seja, a ilha indonésia de Halmahera], ao longo do qual jazem as ilhas de Maluco”. Confirma o cronista-mor do período dos Descobrimentos que Menezes foi, depois, “discorrendo até às ilhas de uns povos que chamam papuas”.
Capitão das ilhas Malucas, de 1527 a 1530, a conduta de Menezes esteve longe de ser a ideal, daí que tivesse sido preso e enviado para Goa. Após breve passagem pelo reino, seguiu para o Brasil onde esteve sete anos à frente de uma capitania, sempre com níveis de popularidade muito baixos. Consideravam-no indigno do seu posto, os moradores da colónia. Em breves palavras, descreve-o assim o historiador Rocha Pombo: “Valente, é exacto, mas cheio de paixões incompatíveis com a compostura de uma autoridade. Além de violento, de índole inconstante e leviano, Jorge de Menezes era um depravado”.
Joaquim Magalhães de Castro