CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 37

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 37

O palácio dourado de Mrauk U

O extenso programa de construção levado a cabo por Min Bin incluiu, além da imponente e estendida muralha, notáveis edifícios religiosos e, acima de tudo, o Palácio Real com telhados revestidos com chapas de finas películas de ouro que reflectiam os raios do Sol, daí o epíteto Palácio Dourado, que os locais (juntando a voz a Khin, dono de restaurante de Sittwe) garantem ter tido o contributo de engenheiros lusitanos.

Visito o local bem cedo pela manhã e deparo com a área central do palácio transformada num desses imensos quadriculados demarcando as típicas “trincheiras” dos campos arqueológicos. Nalgumas delas debruça-se gente do ofício e seus ajudantes escavando o que um grupo de mulheres, em fila indiana e aproveitando o ar fresco da manhã (a partir das dez o calor é insuportável!), carrega em pequenos bidões de plástico cortados ao meio, formando com o seu conteúdo montículos isolados de seixos e terra. Graciosas naquele seu andar que só um ajustado “sarong” à cintura permite, as damas mais parecem dançarinas em plena coreografia, funcionando aqui o chapéu cónico de palha e a “tanaka” no rosto como mero adereço e singela maquilhagem. Outras, mais velhas, transportam o cascalho em bacias de alumínio que equilibram na cabeça com a ajuda de uma rodilha, como faziam as mulheres da minha aldeia quando eu era criança.

Um painel exibe uma fotografia aérea da zona intervencionada, basicamente todo o núcleo do palácio, acompanhada de informações em Birmanês e uma nota de rodapé em Inglês recomendando os visitantes a não entrarem no recinto. Demasiado tarde, lamento. Já cá estou! Do chão recolho um gargalo de garrafa de vidro esfumaçado, cacos de lamparinas de barro e um pedaço de cerâmica chinesa, humildes provas de 354 anos de contínua residência de 49 reis e seus familiares mais próximos, pois neste terceiro terraço se situavam os aposentos reais. As salas de audiências e de coroação, assim como os aposentos de cortesãos e oficiais e alguns membros da família real, rainhas secundárias e concubinas, ocupavam o segundo terraço, estando o terceiro e o mais vasto de todos reservado ao arsenal, aos estábulos para os elefantes e os cavalos, às casas de guarda e aquartelamentos, às torres de vigia e, possivelmente, à casa da moeda e aos túmulos reais, hoje discretas estupas disseminadas pela cidade-aldeia. Isto, se tivermos o grande palácio de Mandalay como termo comparativo, pois há ainda muito trabalho de campo pela frente para chegar a outras certezas.

Escavações efectuadas em 1997 confirmaram que desde o lançamento da primeira pedra, em 1430, o palácio foi reconstruído pelo menos em duas ocasiões: em meados e no final do Século XVI, sendo as paredes externas de tijolo robustecidas com blocos de arenito aquando o processo de fortificação que teve a supervisão de engenheiros portugueses. Muitos desses blocos levaram sumiço e foram usados mais tarde para construir o cais de pedra do porto de Akyab. Dos doze portões – como é da tradição, três para cada ponto cardeal – sobrevive apenas um, franqueando a entrada do canto sudeste do segundo terraço, embora outros possam vir entretanto a ser descobertos. Chama a atenção, bem no centro do complexo, uma construção parcialmente soterrada de blocos de arenito em cujas arestas é bem visível ainda a fuligem do fogo que tudo reduziu a cinzas. Será este, porventura, um acesso ao canal subterrâneo que fazia a ligação ao riacho Thinghanadi, comunicando este com o rio Lemro, permitindo assim que os produtos agrícolas, os têxteis e os mais diversos artefactos, chegassem aos cinco mercados centrais de Mrauk U? A argamassa utilizada nestas muros e muralhas era feita de uma mistura de areia com argila às quais se juntava, para dar a consistência adequada, pedaços de pele, caudas e cascos de búfalos fervidos em água até que tudo se tornasse numa solução de goma viscosa, sendo que a parte superior, inteiramente de tijolos, deve-se aos birmanes após a conquista da cidade.

Sentado num resto desta muralha que abrangia um perímetro de quase dois quilómetros quadrados, tento imaginar o espanto do bravo Sebastião Manrique ao ser confrontado com a magnificência daqueles edifícios de teca lacada e dourada e surreais tectos com pináculos primorosamente ornamentados. O frade, talvez o primeiro forasteiro a deixar-nos um relato do palácio, mostra-se atónito com os pilares que sustentavam a sala principal, “enormes e simétricos”, pois não conhecia “árvores tão altas e rectas” capazes de providenciar semelhante lenho.

As esculturas em alto-relevo presentes nos santuários reais dão-nos uma ideia do aspecto geral do palácio, com os frontões em arco nas entradas, janelas e tronos, característica típica da arquitectura de Bagan ainda hoje presente nessas verdadeiras obras de artes que são os mosteiros inteiramente feitos de madeira espalhados pelo Mianmar. Ajudam também a esse exercício de reconstituição histórica os artefactos expostos no museu arqueológico local construído no interior do terraço principal, facto que em boa verdade chocou e enfureceu os arracaneses (entre os quais o professor Aung), pois estes encaram o local como terreno sagrado. Exibem os seus mostruários alguns artefactos antigos das épocas Vesali e Launggret, precedentes ao reino de Mrauk U, estátuas de bronze de Buda, inscrições em Sânscrito, Arracanês e Árabe, instrumentos musicais e peças de cerâmica, entre outros objectos. Aí estão também três dos guardiões, em estátua, das entradas do palácio, aos quais os moradores de Mrauk U atribuem poderes protectores. E ai de quem os ousar profanar!

Joaquim Magalhães de Castro

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