O Pietismo – IV
Como acontece com qualquer movimento religioso, que procure reavivar as origens ou restabelecer uma pureza doutrinária, pode acabar em formas radicais. O Pietismo também esteve sempre nesta franja, mas tendeu mais para formas radicais de legalismo ou subjectivismo, como veremos. Mas os seus teóricos e defensores consideram que enquanto a sua ênfase permanecer num biblismo equilibrado e não se tornar fundamentalista, de acordo com as verdades dos Evangelhos, o Pietismo permanecerá uma força religiosa saudável, criadora de progresso e regeneradora da vida na igreja cristã global e na espiritualidade de cada crente.
O movimento pietista, apesar de ter perdido o poder com o Iluminismo, ainda influencia o povo alemão. Na origem ao Pietismo estava a intenção de renovação do ideal cristão original, ou pelo menos o do Luteranismo. O Pietismo, por um lado, é a resposta à crescente dispersão dos fiéis devido à complexa e sofisticada teologia de Christian Wolff (1679-1754), o mais importante filósofo alemão entre Leibniz (1646-1716) e Kant (1724-1804), este um famoso pietista; por outro lado, resolveu, dentro do Luteranismo, os problemas causados pela Guerra dos Trinta Anos (1618-1648).
Mas quem foi Christian Wolff? Foi um grande filósofo racionalista, na senda de Descartes, influenciando depois Kant. Wolff redefiniu a filosofia como a ciência do possível e aplicou-a numa pesquisa abrangente do conhecimento humano às disciplinas do seu tempo. A filosofia wolffiana tem uma acentuada insistência n uma exposição clara e metódica, mantendo a confiança no poder da razão para reduzir todos os assuntos a essa forma. Wolff escrevia em Latim e Alemão, o que ajudou a divulgar a sua filosofia. Defendia que a lei moral não depende do arbítrio divino, mas é absoluta e necessária, e deriva da própria natureza de Deus e das coisas que Ele criou. Wolff não nega Deus, nem a religião natural, mas separava a filosofia que concebe a religião natural da religião positiva. Para ele, o critério de verdade consistia exclusivamente na coerência entre as ideias, sem existir relação entre o pensamento e o ser. Os ensinamentos de Wolff tiveram influência praticamente indiscutível na Alemanha até à revolução kantiana, mas continua ainda a ser considerado um dos mais importantes filósofos de língua alemã.
UM MUNDO EM MUDANÇA
Entretanto, o avanço das ciências naturais abalava profundamente a maneira tradicional de se ver o mundo e cada vez mais a filosofia iluminada (Iluminismo) atacava a teologia oficial. Para impedir esse avanço das ciências naturais e do racionalismo, a teologia decidiu dar um fundamento filosófico aos seus ensinamentos, o que causou, todavia, uma separação progressiva entre os fiéis e a teologia. Esse racionalismo e o naturalismo enfraqueceriam também, por outro lado, o Pietismo.
Ao mesmo tempo, o reconhecimento do dogma oficial luterano era exigido pelo absolutismo de Estado no mundo germânico, o que deixou muitos fiéis descontentes. É neste contexto que se forma e ganha consistência o Pietismo, que considerava ambas as tendências (racionalismo, cientismo e absolutismo) como manifestações externas contrárias ao ideal cristão original, pelo que “reagiu” contra ambas. O Pietismo é uma clara reacção à rotina do culto e ao dogmatismo doutrinário, enfatizando os aspectos práticos do Cristianismo e defendendo o conceito de sacerdócio dos fiéis, além de uma reforma do ensino teológico. O princípio do sacerdócio de todos os crentes, uma ideia cristã enfatizada pelo Protestantismo, foi decaindo entre muitos dos seguidores desta reforma, mas retomado pelo Pietismo, onde é totalmente aplicado, para que não apenas os teólogos pudessem liderar os grupos de leitura da Bíblia, mas também leigos sem formação académica. O Pietismo pretendia, assim, reforçar a atitude e o sentimento religioso, acentuando o aspecto subjectivo da experiência religiosa. É também contrário a todos os dogmas e a todas as instituições eclesiásticas, ao formalismo rígido de hierarquias. Não é de estranhar que, entre os pietistas, a oração partilhada seja considerada, muitas vezes, mais relevante do que o ofício religioso.
Além deste sacerdócio universal, o Pietismo sustenta o princípio luterano de que a Sagrada Escritura é a fonte da fé e do conhecimento de Deus, sendo por isso de vital importância na espiritualidade pietista. Nesta, não só a fé redime o homem, mas também a atitude e o sentimento religioso, a crença e fervor que se devem manifestar no quotidiano dos crentes. Mas há um rigor e uma radicalidade espiritual muito grande no Pietismo. Por exemplo, Immanuel Kant teve uma instrução religiosa pietista no severo Collegium Fridericianum, em Königsberg (actual Kaliningrad, na Rússia), mas tanto os métodos pedagógicos como as obrigações religiosas foram alvo das suas críticas. O exagero e até mesmo a coerção religiosa geraram nele uma rejeição da prática da oração, por exemplo. Kant nunca foi membro da congregação e não visitava a igreja nem mesmo aos Domingos.
Os pietistas reúnem-se em conventículos, “à parte do serviço divino, para encorajar mutuamente a piedade”. Acreditam na redenção, na regeneração, na capacidade do indivíduo de recomeçar e renovar. Qualquer verdadeiro cristão pode olhar para trás na sua vida e perceber que uma luta interna contra o pecado culminou numa crise, podendo com atitude e sentimento tomar a decisão de começar uma nova vida centrada em Cristo, defendem os pietistas. O mandamento bíblico, de revelação divina, para que os crentes possam levar uma vida santa e esforçarem-se pela santificação, é também um mandamento de vida para os pietistas.
O crente é em si um pecador. Tem um caminho largo e fácil para o pecado, mas para a redenção e salvação o caminho já é estreito, recordam. O tema central do Pietismo é pois a experiência do crente com Deus, a sua condição de pecador e o caminho para a sua salvação. Daí o ênfase na necessidade da conversão individual e do nascimento de uma nova conduta no crente, desapegada do mundo material e firmada no apoio mútuo da comunidade reunida em culto ao redor do estudo da Bíblia.
O Pietismo enfatiza a dimensão experiencial e a prática da fé, mais do que os luteranos ortodoxos. Os pietistas, por um lado, desenvolveram uma moralidade ascética por vezes áspera, especialmente no que concerne à alimentação, ao vestir e ao lazer; mas por outro lado, enfatizaram um sentimento de responsabilidade para com o mundo, que manifestam em actividades de missão e caridade. Privilegiam o contacto directo da pessoa com Deus, sem diferenciações entre clero e leigos, sem formas de pertença eclesiástica ou institucional. Deus sente-se melhor nos pequenos grupos, nos exíguos conventículos, os “collegia pietatis”.
Vítor Teixeira