CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 36

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 36

Uma Veneza oriental

Logrado o seu principal objectivo e recuperada a higidez, Manrique quis ir ao palácio agradecer ao rei por lhe ter enviado tão providencial galeno. Com as ruelas enlameadas pelos aguaceiros da monção o barco era a maneira mais conveniente de lá chegar, até porque por via fluvial se acedia à maioria dos lugares da cidade como o comprova a ilustração de Schouten. Como aconteceu com inúmeros sítios pela Ásia fora, não faltou quem comparasse Mrauk U a Veneza. Foi o caso do jesuíta António Farinha que dez anos depois, e na companhia do nosso já conhecido João Cabral, aqui se demorou tendo remetido para Roma o seu parecer a respeito de tão nobre urbe. Manrique não chega tão longe e até se mostra comedido na avaliação: “Um rio considerável atravessa a cidade, subvidindo-se em inúmeras ramificações, de modo que a maioria das ruas são cursos de água, navegáveis até por grandes embarcações”.

Quem te viu e quem te vê! Como reagiria o nosso cenobita se visitasse hoje a humilde povoação em que se tornou a orgulhosa capital asiática concorrente, em termos de poderio e influência, com as pariformes da Europa do seu tempo? Com incredulidade e decepção, no mínimo… Desprovida de sistema de esgoto ou algo a que se possa chamar de lixeira pública, todo o tipo de dejectos produzidos pelos habitantes da actual Mrauk U têm o rio como irremediável destino. É deveras deprimente olhar para os canais com águas turvas onde boia e se acumula todo o tipo de lixo – sempre em grande destaque o detestável plástico! – entre o qual ginga, em afã piscatório, um ribeirinho encavalitado numa jangada de bambu. Vários feixes desta planta encostados à margem e umas quantas pirogas varadas a poucos metros de distância onde crianças saltam à corda, com alguma imaginação, talvez ajudem a compor um desejado ramalhete bucólico, já que apenas raros restos de muros evocam o áureo pretérito. É difícil, mesmo muito difícil, imaginar as galantes e preenchidas embarcações de outrora a vogarem nas agora lodosas e esverdeadas águas.

Nas intersecções dos riachos com as fortificações, lembra Manrique, “havia comportas comandadas por baterias”. Quem de Daingri-pet se dirigisse ao palácio por via fluvial avistava a parte oeste da cidade. Ora, foi exactamente a zona que percorri, neste caso, por estrada, logo após o desembarque em Bandel. Muito do casario com telhado de folha de palmeira e paredes de bambu, assenta, ontem como hoje, em postes de madeira. Manrique louva o engenho e arte de quem concebera as “exuberantes esteiras da mais fina textura e de muitas cores” que decoravam o exterior das casas. Sem dúvida! Felizmente essa arte não se perdeu, nem aqui nem em vastos territórios do Sudeste Asiático, do Sião à Insulíndia e daí ao Sul da China. “Mas os príncipes e os grandes”, ressalva Manrique, “têm paredes de madeira em seus palácios, decoradas com esculturas e molduras douradas”.

Eram ínfimos, se comparados com os do Filho Celestial, os territórios sob a alçada de Thiri Thudhamma, não obstante, a sua cidade-palácio causava tanta admiração quanto a Cidade Proibida, em Pequim, apesar de ter apenas um terço do seu tamanho. Mrauk U encontrava-se rodeada por muros que confinavam uma circunferência de doze milhas, sendo parte considerável dessa área composta por colinas roqueiras, lagos artificiais e rios de marés, como se pode parcialmente constatar na ilustração holandesa. Vê-se também que a muralha não corre continuamente ao redor da cidade, antes preenche as lacunas entre as defesas naturais. Tal como os rios, alguns dos lagos estavam equipados com comportas que em caso de emergência podiam ser abertas, servindo assim de eficiente dissuasor contra as incursões inimigas. Resultaria na plenitude este estratagema aquando a tentativa de invasão birmanesa em 1580, o que levaria algumas plumas-voz-do-dono a declarar Mrauk U como “cidade inexpugnável”. Porém, como sagazmente comenta Maurice Collis, “uma cidade inexpugnável é como a Idade do Ouro: nunca houve uma e nunca haverá”.

Um conjunto irregular de outeiros, característica topográfica da cidade, asseguravam a protecção a norte e a sul. A oeste estavam as principais fortificações e no seu oposto cardeal vários lagos profundos, mais eficazes em termos defensivos do que os fossos. Esta cadeia de lagos artificiais com becos sem saída e entradas falsas colmatavam esse ponto franco que representa uma planície aberta. Esse variado sistema de fortificações, fomentado por Min Bin (1531-1553), deve muito aos conhecimentos e perícia de conselheiros militares e engenheiros portugueses.

Quase um século depois, temos um religioso da atlântica nação a usufruir dessa segurança e a ser recebido com honras de alto dignitário. O barco desembarcaria Manrique junto aos degraus que levavam ao portão oeste, no terraço mais externo da cidade-palácio, tendo o frade transposto aquele portão acompanhado por outras pessoas autorizadas a comparecer ao dique real. Esse grupo, só depois de ter atravessado dois outros terraços, chegou ao recinto mais alto, onde se situavam os aposentos de Thiri Thudhamma. Na mente de Manrique certamente estava bem presente o preceito de Santo Agostinho: “Deus não manda o impossível, mas, dando os seus preceitos, exorta-te a fazer o que podes e a pedir-Lhe a graça para o que não podes, e auxilia-te para que o possas”.

Joaquim Magalhães de Castro

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