O Pietismo – I
As reformas no Cristianismo não deixaram também de suscitar reformas, cismas, divisões, desintegrações. A primeira das reformas quinhentistas não fugiu a esse “destino”, quase como que predestinada para a fractura. Uma das suas múltiplas reformas, ou críticas, foi o denominado “Pietismo”. Trata-se de um movimento de renascimento espiritual entre os luteranos fundado por Philipp Jakob Spener (1635-1705) no Século XVII, mas registando um maior desenvolvimento na centúria seguinte. Além de Spener, tiveram importância no movimento figuras como August Hermann Francke e Nikolaus Ludwig, conde de Zinzendorf. O Pietismo tornar-se-ia muito influente e desempenhou um grande papel na formação de filósofos e escritores, como Immanuel Kant, Johann Georg Hamann, Gotthold Ephraim Lessing e Friedrich Hölderlin.
De um modo geral, pode-se considerar o Pietismo como um movimento dentro do Cristianismo que enfatiza a devoção pessoal, a santidade e a experiência espiritual genuína, em vez da mera adesão à Teologia e ao ritual da igreja. De forma mais específica, o Pietismo foi um avivamento espiritual que se desenvolveu dentro da Igreja Luterana, a partir do Século XVII, na Alemanha. “O estudo da Teologia não deve ser feito na contenda de disputas, mas sim pela prática da piedade”, sumariou um dia Philipp Jakob Spener.
É importante referir que ao longo da história do Cristianismo surgiram vários movimentos de cariz “pietista”, sempre que a fé se revelou vazia de conteúdo e de sentido da realidade, suscitando debates e depois renovação. Quando a religião ciclicamente se tornava fria, formal e institucional, menos espiritual, surgiram sempre movimentos de renovação ou de retorno às origens, pugnando por formas de espiritualidade mais próximas da piedade, da pureza da fé, trazendo a renovação e a reforma como algo próprio e identitário. Por vezes, essa renovação, ou sede de reforma, surgiu ou derivou para a radicalidade e criou rupturas, fragmentações e desunião. Assim sucedeu na Igreja Católica, assim sucederia na própria reforma, que se viu cedo minada por movimentos reformadores internos, cisões e divisões. Porque em qualquer religião existiu sempre a chamada “fome espiritual”, a insaciedade do espírito e o sentimento de renovação, nem sempre moderados.
DIVISÕES NA REFORMA PROTESTANTE
Por volta do Século XVII, a Reforma Protestante tinha-se desenvolvido em três denominações principais: Anglicana, Reformada (Calvinista) e Luterana. Cada uma destas estava ligada a entidades nacionais e políticas, logo tendendo na origem para a desunião. Com efeito, existia em muitos casos uma estreita relação, filial quase, entre cada igreja protestante e o Estado, do que se pode deduzir uma superficialidade espiritual crescente, uma crise na autoridade da Bíblia e um acentuado peso da instituição nessas igrejas. Afinal, o que menos de um século antes criticaram na Igreja Católica era cada vez mais uma realidade no universo protestante. Neste sentido, como sempre sucedeu no Cristianismo, o sentimento de decadência espiritual e logo o de reforma para tal contrariar, surgia nas denominações protestantes. E o Pietismo seria uma delas, como outras que já aqui vimos. Era urgente dar um novo alento à Teologia e prática da Reforma, defendiam vários protestantes.
Mas o que é afinal o Pietismo? Em primeiro lugar, vamos à etimologia (origem) e significação do termo. O Pietismo, antes de tudo, não deve ser confundido com o Quietismo‚ nem muito menos com o Puritanismo. Este último é tão somente um movimento de reforma que surgiu e evoluiu nos Séculos XVI e XVII na Igreja Anglicana (Inglaterra) e que passou para as colónias da América do Norte, onde fundaria o “modelo de vida puritana”. Depois, o conceito de “puritanismo” alastrou, no sentido (mas não na “denominação cristã” de que falámos), para designar as formas de retorno à pureza das origens, na esfera protestante como até em alguns sentidos da Igreja Católica. O Quietismo, por seu turno, não é protestante, mas sim um produto da Igreja Católica. Nasceu em Espanha (com Molinos e o Molinismo), depois em França (com Fénelon) e teve ramificações na Itália e em França, nos Séculos XVI e XVII. O Pietismo nasceria na Alemanha luterana do Século XVII, como um movimento que acentua a fé pessoal em protesto contra a secularização da Igreja (luterana). Do ponto de vista do contexto histórico e causal, surgiu como uma reacção à guerra dos “Trinta Anos” (1618-1648), que teve na Alemanha e suas divisões políticas um dos seus grandes palcos. A guerra terminaria com o reforço do Protestantismo e dos Estados que o abraçavam, reduzindo a influência da Igreja Católica na Alemanha. No entanto, acentuou o vínculo institucional entre o Estado e a Igreja Luterana, relação essa que se focava mais no plano institucional e formal do que no espiritual, que foi mitigado e secundarizado. Entre outras causas e tendências de divisão na Reforma Protestante, esta Guerra dos Trinta Anos e a estatização da esfera religiosa suscitaram o vivo protesto de alguns sectores, canalizando-se algumas críticas para a via pietista, cuja voz se tornava mais forte sempre que a religião se divorciava da experiência pessoal, da espiritualidade, em resumo. Entre outros motivos imediatos para o espoletar deste movimento, poderíamos destacar primeiro o endurecimento escolástico do Luteranismo, distanciado que estava já da intuição de Lutero, e depois as influências vindas do exterior, das obras dos puritanos ingleses, como Richard Baxter, John Bunyan e outros exilados na Holanda, como William Ames, que rapidamente tocaram fundo no espírito crítico dos luteranos alemães.
O termo pietismo parece ter sido usado primeiro para identificar o movimento liderado por Philipp Jakob Spener (1635-1705), um teólogo luterano e pastor em Frankfurt, na Alemanha, frequentemente considerado o pai do pietismo alemão. A principal obra de Spener, “Pia Desideria”, ou “Heartfelt Desire for God-Pleasing Reform”, publicada originalmente em 1675, tornou-se um manual para o Pietismo, que dele retira a denominação.
O movimento começou, pois, em Leipzig, em casa de Spener, na década de 1680, com reuniões que mais se assemelhavam a conferências, as “Collegia pietatis” (ou “assembleias piedosas”). Nelas, os leigos reuniam-se para orar e estudar as Sagradas Escrituras. O movimento cresceu rapidamente, inicialmente enraizado em Berleburg, graças ao Conde Casimir von Wittgenstein. Ali seria publicada a Bíblia de Berleburg, pelo erudito e linguista Johann Haug. Depois passaram para Berlim, Augsburg e especialmente Halle, Württemberg e a Alsácia. Da Alemanha chegou às colónias britânicas da América do Norte, em 1719, graças a Alexander Mack, que trouxe o movimento para a Pensilvânia, fundada pelo quaker William Penn….
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa