CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLX

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Os Huteritas – VI

Os Huteritas insistem que toda a vida pertence a Jesus Cristo. Além das crenças na não-violência e no baptismo após a confissão de fé, a prática económica radical de partilha intencional de todos os bens na comunidade deriva desse princípio, de que tudo pertence a Jesus. Toda a experiência huterita é assim formada no contexto dessa vida partilhada. Por fim, falemos um pouco da espiritualidade huterita.

Embora muitos huteritas se refiram à narrativa do Pentecostes nos primeiros capítulos dos Actos dos Apóstolos como o fundamento bíblico para a vida em comunidade, a motivação teológica para esse estilo de vida é ainda mais abrangente. Partilhar coisas espirituais e materiais em comunidade é uma maneira de cumprir fielmente o mandamento central das Escrituras – amar a Deus e ao próximo – num sentido diário e corporificado. Cuidar dos idosos, das viúvas e dos órfãos, tratar de forma justa cada membro da comunidade, é assim entendido como uma expressão quotidiana desse fundamento bíblico central. A comunhão entre Jesus e os seus discípulos é pois o grande exemplo desse tipo de vida compartilhada entre os huteritas.

Os huteritas praticam o baptismo de adultos, não apenas devido à idade de maior discernimento do indivíduo, mas essencialmente porque acreditam que a igreja é o corpo de crentes que desejam seguir a Cristo de forma sincera, tornando-se portadores do Seu reconciliador Espírito de paz. Desta forma, para os huteritas seguir a Cristo requer uma resposta obediente e plena ao chamamento de Deus, vivido na comunidade de fé, em congregação e unidade. A vida comunitária torna possível o mutualismo, o apoio, a advertência e o encorajamento entre todos, bem como uma forte responsabilização: o que cada um faz implica todos os demais, por isso há que agir em conformidade com os preceitos huteritas. Há assim uma verdadeira irmandade huterita, em que todos os seus membros trabalham juntos. Rezam juntos, vivem juntos, para se lembrarem uns aos outros a vida divina que Jesus partilhou com os homens e que eles desejam partilhar com o mundo.

PRESERVAR UMA CULTURA

Uma cultura de propriedade comunal, baseada na crença na vida comunitária, em que o que pertence a um, a todos pertence. Todos os rendimentos dos diferentes negócios administrados pela comunidade em geral são partilhados entre os membros da comunidade, de forma equitativa e justa. Se um membro precisar de algo que tenha que ser comprado, a comunidade comprará, mas só se os anciãos considerarem a pertinência ou imprescindibilidade da aquisição, que será para todos, no fundo. Os membros da comunidade também recebem um subsídio, o que lhes confere a oportunidade de comprar bens para uso pessoal. Mas os bens de maiores dimensões ou custos, que beneficiam toda a comunidade, como equipamentos agrícolas, são comprados de forma comunitária e podem ser usados por todos os membros. Em algumas colónias huteritas existe a permissão dos membros da comunidade poderem obter dinheiro fora da comunidade, mas a prática é altamente desencorajada, pois ganhar dinheiro por motivos pessoais colide com as suas crenças. Todos os membros que vivem numa colónia “possuem” os bens dessa comunidade colectivamente. Trabalham uns para os outros e não pagam salários dentro da comunidade. No entanto, como não há salários, todas as necessidades da vida são fornecidas, dentro da frugalidade e sobriedade do estilo de vida. Cada membro serve ao outro através dos seus trabalhos e mão-de-obra, e todos os lucros são partilhados.

Para muitos, é surpreendente a forma como os huteritas conseguiram preservar a sua herança cultural neste mundo em rápida mudança, principalmente o comunitarismo numa época de crescente individualismo. De forma simples, os huteritas são um povo orgulhoso da sua cultura multisecular praticamente intacta, com crenças religiosas profundamente enraizadas que foram capazes de superar muitas dificuldades, em contextos diferentes e provações que os poderiam ter extinguido. A dedicação à preservação da sua cultura é algo fundamental na vida huterita. É de facto uma comunidade de bens, de mercadorias, de pessoas iguais e sem distinção, biblicamente fundamentada. «Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um» (Actos 2, 44-47). Uma vida singela, de louvor a Deus, de alegria e simplicidade no coração, olhando por todos de forma igual. Como se fosse um só coração, uma só alma, um corpo só, assim pretendem ser os huteritas, sem nada entre eles ou a separar, mas apenas a unir, como em Actos 4,32-35.

Estribam-se no Antigo Testamento, no povo eleito de Abraão, de Isaac, Jacob ou Moisés, “eleito” por Deus e cumprido por Jesus, que também vivia “em comunidade” com os seus apóstolos. Todos esses exemplos, segundo a fé huterita, apontam para que Deus desejasse que o Seu povo vivesse separado do mundo, para se entreajudarem e apoiarem uns aos outros, em qualquer forma de comunidade.

Mas, até que ponto os huteritas partilham os seus bens? Bem, os huteritas obviamente que não partilham as suas escovas de dentes e afins. Todos os huteritas mantêm alguns bens pessoais, em que se incluem objectos pessoais. Além disso, os lares são particulares e os bens domésticos são considerados como objectos pessoais, embora a colónia possa tê-los fornecido desde o início. Mas as casas, garagens, celeiros, veículos e máquinas, como também os sucessos e os fracassos, são todos de propriedade conjunta de todos os membros e para serem geridos e vividos em comum.

Além de tudo isto, encaixado no modo de vida pacifista, os huteritas, enfrentaram perseguições religiosas novamente durante a Primeira Guerra Mundial, na sequência de uma lei federal dos Estados Unidos a impor que todos os homens capazes entre os 21 e os 31 anos tivessem que efectuar serviço militar. Os huteritas pediram uma isenção desta lei e uma isenção também de uso dos uniformes militares, mas sem sucesso. Quatro “mancebos” da Colónia Rockport foram então enviados para a prisão de Alcatraz (São Francisco, Califórnia), em 1917, onde foram brutalizados. Dois dos homens, que seriam transferidos para um hospital militar no Kansas, foram espancados por continuarem a não aceitar a lei. Mais uma vez, os huteritas tiveram que fugir devido à perseguição religiosa. Desta vez, para o Canadá, onde se pediam colonos para as pradarias a leste das Rochosas. É por isso que muitos huteritas vivem no estado canadiano de Alberta, desde 1918, onde lhes foi concedida liberdade religiosa e a possibilidade de manterem a sua vida comunitária e pacifista intacta, sem serviço militar nem porte de armas ou uniformes. E onde tudo é comum….

Vítor Teixeira

Universidade Católica Portuguesa

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