Violante, a cristã de Cosmim
Continuamos esta semana com o relato da aventura dos fugitivos portugueses na sua desesperada tentativa de alcançar o porto de Cosmim. Agora, com adequado transporte fluvial, corrente a favor e vento de feição – a “servir-lhes a popa”, como deliciosamente escreve Fernão Mendes Pinto – lograram chegar a um pagode que tinha como divindade principal Pone Ma Kyi Shinma Nat, a guardiã das terras agrícolas e da agricultura na crença ainda hoje bem viva entre os camponeses de Myanmar.
Era o eremitério habitado por um homem já de idade e 37 mulheres, a maior parte “velhas e beatas professas”, que os alimentaram e lhes deram tecto. Tiveram essa atitude provavelmente mais pelo receio que lhes incutia a presença de tão estranhos homens do que propriamente por genuína caridade. Também souberam aplicar a filosofia oriental dos três macacos sábios japoneses, “não veja o mal, não faça o mal, não fale o mal”, garantido nada saber a respeito dos doudos assuntos humanos e suas ambições, pois “eram mulheres desapegadas por voto das coisas do mundo” e a única vida que tinham era estarem ali encerradas, “rezando continuamente ao Quiay Ponvedé, que movia as nuvens do Céu, pedindo-lhe que lhes desse água nos campos das suas lavouras, para que não lhes faltasse o arroz”, deixando assim sem qualquer resposta as muitas e legítimas interrogações dos portugueses.
O culto animista dos “nats” perdura ainda nas vilas e aldeias deste país, estando dele a cargo uns mestres de cerimónias, espécies de xamãs, protagonistas das festividades, os chamados “nat-pwes”. Esses indivíduos, os “nat-kadaw”, têm capacidade de serem possuídos pelos espíritos, e quando tal acontece alteram-se de forma radical as suas vozes enquanto executam elaboradas danças.
O único mosteiro de monjas existente hoje em dia no percurso que estamos a tentar reconstituir é o de Thiri Gone Wai, em Hinthada, e acerca da sua origem não consigo obter qualquer informação. Aí habitam as designadas “thilashins”, não propriamente monjas, antes noviças. Tal como as congéneres da Tailândia e do Sri Lanka, situam-se algures entre o leigo comum e o monástico ordenado, podendo receber treino específico e praticar a meditação. As vestes cor-de-rosa, a cabeça rapada, o xaile alaranjado e a tigela de esmola de metal são sinais distintivos desta classe monástica que reside em alojamentos separados e embora não precise de cuidar dos monges ajuda a cozinhar, se necessário. Embora estejam em termos hierárquicos abaixo dos monges, não são deles subservientes.
No conforto do eremitério, os portugueses aproveitaram para consertar a embarcação furtada e antes de partir proveram-se dos bens que a dispensa do convento tinha em abundância: arroz, açúcar, feijões, cebolas e patos. Abalaram pela noitinha, “a remo e à vela”, rio abaixo.
Durante uma semana não ousarem ir a terra, apesar de abundarem lugares habitados ao longo do rio. Iam perturbados, receosos, em constante sobressalto, mas o pior estava para vir: à entrada de um esteiro foram subitamente acometidos por uma dúzia de barcos de piratas fluviais. Tal foi a intensidade do ataque “que em menos de dois credos” jaziam mortos três dos desafortunados, enquanto os cinco sobreviventes se debatiam nas águas do rio “envoltos no nosso sangue, das feridas que levávamos”… Alcançada a margem, escapuliram-se para o mato onde se resguardaram o resto do dia. Gravemente feridos, “com mais esperanças de morte que de vida”, seguiram caminho por terra, indecisos sobre o rumo a seguir.
E quando o desespero parecia definitivamente instalado, “com dois companheiros, dos cinco que éramos, para morrer”, quis a Providência que passasse uma embarcação carregada de algodão no exacto momento em que caminhavam junto ao rio. Comandava-a um mercador gentio casado com uma mulher cristã chamada Violante e tinha Cosmim como destino. A mulher logo reconheceu naqueles forasteiros, portugueses irmãos seus na Fé, e quiçá no sangue, pois pela descrição é muito possível que Violante fosse uma luso-descendente. Exclamou: «– Jesus! Isto são cristãos, que eu vejo diante de mim?». Conduziu de imediato o barco em direcção aos fugitivos e “saltando em terra, e o marido com ela abraçaram-nos ambos, chorando muitas lágrimas”… Já na embarcação, Violante tratou-lhes das feridas e cobriu-os com os panos que tinha disponíveis, pois não passavam de farrapos a roupa dos tristes foragidos. Cinco dias volvidos chegavam à cidade de Cosmim, “que é um porto de mar no reino de Pegu”, onde puderam convalescer convenientemente em casa de Violante.
Não há mal que sempre dure… Estava atracada nessa altura em Cosmim a nau de Luiz de Montarroyo que tinha como destino final Chatigão, “onde naquele tempo havia muitos Portugueses”. Nesse conhecido e movimentado porto de Bengala, embarcaria Fernão Mendes Pinto para Goa, na fusta de um tal Fernão Caldeira, e na Roma do Oriente veio a encontrar Pero de Faria, o ex-capitão de Malaca que o tinha mandado a Martavão com a embaixada a Saw Binnya. Pôde então, o nosso herói, dar-lhe recado dos trágicos acontecimentos.
Joaquim Magalhães de Castro