CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLVIII

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLVIII

Os Huteritas – IV

Sem tentações, a vida huterita é construída em torno da Bíblia, vivida no sentido da ética de comunidade. O princípio basilar huterita poderíamos dizer que é o “ama o teu próximo”. O caro leitor dirá que é então o mesmo de tantos cristãos, mas a particularidade dos Huteritas é que o vivem de forma própria, distinta dos demais. Como? Por exemplo, em tudo: desde a comida, as roupas, os óculos e os acessórios essenciais para a vida, todos são fornecidos pela comunidade. Em troca, os homens devem-se voluntariar para construir casas e fazer outros trabalhos necessários na colónia, que sirvam a todos e para todos, sem hesitar.

A comunidade huterita distingue-se das demais anabaptistas precisamente pelo zelo e rigor com que vivem quotidianamente esse comunitarismo, o “extremo” a que o levam e a negação da propriedade individual. Para muitos huteritas, cada comunidade é um prolongamento do Paraíso. Mas alguns querem escapar desse paraíso, que não suportam mais, onde o “eu” não existe, mas sim – e apenas – o “nós”. Todos têm os seus interesses, mas têm que ser para o bem comum, não apenas para cada um singularmente.

Para se dar um passo fora da comunidade, tem que se pedir permissão a um ancião. Mesmo para sair definitivamente, o que acontece com cerca de dez por cento em cada comunidade, anualmente. A maioria fá-lo de noite, deixando uma nota explicativa. E todos falam em “escapar”, nas notas que deixam e no que depois relatam ao mundo. Os que “escapam”, que se vão, só poderão vir visitar as suas famílias se os anciãos permitirem, o que pode não acontecer.

ALGUMA EVOLUÇÃO, PORÉM…

Sim, há sinais disso… Um pouco de tecnologia começa a aparecer entre os huteritas dos Estados Unidos e do Canadá. Ao contrário dos amish, com os quais muito têm em comum, os huteritas começam a adoptar selectivamente a tecnologia. Esta restringe-se aos tractores para o amanho da terra e alguns computadores para efectuarem negócios com o mundo exterior. Os amish, como já vimos, questionam estas adopções tecnológicas, até os preventivos e úteis detectores de fumo são evitados por eles.

Os huteritas, mesmo sendo um grupo separado do mundo, que se afastaram daquilo que designam como as forças malignas do mundo, admitem no entanto algumas opções tecnológicas, embora sem pôr em causa os seus princípios de comunitarismo e isolamento.

Estão fora de moda, ultrapassados no tempo, são muito dogmáticos, acusam-nos os que vivem do lado de cá, no mundo. As mulheres têm um papel importante, é importante referi-lo, mas muito tradicional na perspectiva mundana, pois são essencialmente procriadoras, cozinheiras e encarregadas da limpeza. As decisões importantes sobre a direcção de cada colónia estão reservadas aos anciãos, que são sempre, todos, homens. Mas sempre, todos, com um forte sentido de comunidade. As decisões do dia-a-dia, refira-se, dado que as decisões de maior fôlego e “estratégicas” são tomadas por todos os homens. Mas só por homens! Que são quem trabalha nas terras, quem constrói, quem abre caminhos ou canais, dirige enfim cada comunidade.

Existem asilos de idosos, a cargo das famílias que lá depositam os seus. Mas todos ajudam. No fundo, muitos dos que avaliam estes fenómenos anabaptistas consideram que, na essência, eles nunca perderam algo que nós, os do “mundo” exterior, já há muito perdemos. Principalmente a partir da Revolução Industrial, no Século XIX, a desagregação da estrutura social baseada na paróquia rural, para a qual o êxodo das famílias para as cidades em muito contribuiu, acabou por cimentar o individualismo. Nos huteritas, por exemplo, não houve êxodo rural, não houve desagregação, não há qualquer hipótese, também, de individualismo.

Alguns, no mundo exterior, apontam que estas culturas, como a huterita, poderiam ser atractivas nos tempos de hoje, podiam ser um desafio até. No mundo actual, fustigado pela “droga” da qual depende irreversivelmente, a economia, e com a ameaça do desemprego, da pobreza, ou miséria, agrilhoado ao individualismo e ao relativismo, alguns defendem que o modo de vida dos huteritas, ou dos amish, a cultura do “berço ao túmulo”, poderia ser uma solução, ou pelo menos uma alternativa. Mas existem desvantagens nesse modo de vida, além de que as vantagens do mundo exterior ressoam sempre mais forte.

Uma das desvantagens prende-se com o casamento: para se encontrar um esposo ou esposa, tem que se ir procurar noutra comunidade, huterita claro. São sempre as mulheres que se mudam, que saem da sua família para ir viver com o marido e a família deste. O acervo genético é limitado, e como se pode adivinhar há que evitar a consanguinidade, “incestuosa” na lógica huterita. O que não é errado nesta perspectiva científica, mas temos que observar que a “oferta matrimonial” é limitada, sem abertura ao exterior, de forma alguma.

Tudo pertence à comunidade. Outra regra huterita que desmobiliza uma hipotética conversão. Terra e propriedade são de todos, comunitárias. Os huteritas não recebem qualquer pagamento pelo seu trabalho, seja ele qual for. Nem existe esse conceito, de salário. O “negócio” que se faça com o exterior é de todos e para todos, como o tractor ou o computador.

As crianças são educadas no seio de cada colónia até aos catorze anos, em média, ou até a uma idade superior, se o Estado onde se situa a comunidade impuser um limite mínimo. A educação é contudo essencialmente de matriz huterita. A taxa de natalidade é elevada, cerca de 45,9 por mil habitantes. As colónias tendem sempre a crescer, o que faz com que haja conflitos com vizinhos do mundo exterior. Conflitos não da parte dos huteritas, mas incompreensão e má vontade dos vizinhos, que não entendem o pacifismo, o comunitarismo e a vida ortodoxamente rigorosa. Em algumas regiões, aprovou-se mesmo legislação para impedir o crescimento das colónias huteritas, o que criou instabilidade nas mesmas.

Mas tal não impediu que as colónias prosperassem dentro do seu modo de vida. Algumas procuraram outras regiões, dentro das possibilidades que os Governos estaduais nos Estados Unidos e no Canadá lhes ofereçam. E a intocada marcha de vida huterita assim continua, imutável e discreta, perpetuamente confinada e isolada.

Vítor Teixeira

Universidade Católica Portuguesa

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