A aldeia portuguesa de Kemo
Se consultarmos um mapa da região reparamos que a entrada fluvial para Thandwe faz-se pela foz em delta do rio com o mesmo nome, uma dezena de quilómetros a norte da agora veraneante costa de Ngapali. Era daí que as embarcações enveredavam com o afluente certo, entre os vários disponíveis, para descerem, ou melhor dizendo, para subirem, pois contra a corrente navegavam, rumo à nobre cidade de Sandoway. Estamos aqui perante um padrão comum: rios que se entrecruzam e rasas águas costeiras, excelente infraestrutura para a actividade comercial e o transporte. Das diversas e frustradas tentativas para obter algum tipo de informação histórica credível, registo a menção a um certo local a jusante do Sandoway, Kemo (ou Kimo), seria o nome, onde outrora terá havido actividade portuária e onde estanciavam habitualmente os portugueses. Para Kemo, então, que se faz tarde!
À saída de Thandwe surge novo templo e mais lembranças de Buda, desta vez identificadas: uma lasca da costela do Iluminado. Quantos mais quilómetros percorro maior a intuição de que é por aqui que devo prosseguir, se bem que a paisagem se rarifique e empobreça cada vez mais. Se regressar de Kemo de mãos vazias, só pelo passeio neste território, dir-se-á, estagnado nos finais do Século XIX, já terá valido a pena.
A Kemo com que me deparo (certifico-me do local, proferindo o nome em tom interrogativo sempre que encontro alguém), cinco ou seis quilómetros a norte de Thandwe, é lugar pobre e pouco habitado; algumas dezenas de casas humildes ao longo de uma estrada que desemboca num pequeno embarcadouro, e umas quantas vielas adjacentes. Estão aí atracadas duas barcaças; uma transporta pranchas de madeira; a outra, de maior calado, esconde a carga sob um oleado verde. Informa um homem já velho, simples mirone, que o “ferry” de mercadorias chegou há dias de Yangon. Pelos vistos Kemo serve, por assim dizer, de porto de Thandwe, pois o assoreamento do leito do rio foi ao longo dos tempos tornando impraticável a navegação às embarcações de médio e grande porte. A verdade é que nesta viagem, sempre que a estrada se aproximava do rio, avistei apenas pequenos barcos de casco alongado e batéis.
Uma ilhota caprichosamente posicionada no meio do Sandoway obriga o acastanhado caudal a dividir-se em dois, coisa comum nos plácidos rios da região. Pergunto-me: terá sido este o acampamento de Guampalaor, como lhe chama o nosso Fernão Mendes, onde a tropa birmanesa aguardou a chegada dos elefantes antes da investida contra a “cidade de Savady”? Se atendermos à fonética tem sentido a associação de Guampalaor a Gwa, embora seja improvável hipótese pois esta povoação dista uma boa centena de quilómetros daqui.
Vai chegando entretanto curta e desconchavada embarcação de madeira carregada de marisco acomodado em caixas de plástico cheias de gelo. Vários homens descarregam-nas recorrendo a enormes bambus, usando-os como alavanca. Nas imediações, chamam-me a atenção as paredes de um edifício de nítida traça sino-portuguesa, quiçá resquícios da antiga alfândega. Situa-se a poucas dezenas de metros do pagode de Kin Zay Tee, sinal da predominância ou porventura exclusividade budista. Contrariam esta probabilidade motivos decorativos em forma de cruz nos alpendres de algumas das casas, similares aos das aldeias dos bayingyis católicos do vale do Mu. Será este, porventura, sinal da existência de cristãos numa época remota? É bem possível…
Sem grande esforço, apercebo-me das feições caucasianas em alguns dos habitantes, que me olham num misto de curiosidade e surpresa (raros turistas se aventuram nestas bandas), o que é comum em Myanmar… Difícil de contrariar, esta crescente sensação de impotência… Não há maneira de encontrar interlocutor apropriado: um professor, um padre, sei lá, alguém que saiba Inglês e conheça a história local. Os rumores de que em Kemo habitaram em tempos portugueses serão essa mesma noite confirmados pelo cunhado da senhora Susu, proprietária do Ocean Pearl, o restaurante onde se come a melhor sopa de peixe das redondezas: uma espécie de “tom yam”, mas sem aquele molho avermelhado e picante.
O senhor U Thein Win, aficionado pela História, num Birmano-Inglês de dificílima compreensão, disserta sobre a ligação dos portugueses aos reis de Arracão, desde os tempos de Min Bin (ou Min Ba Ri, como ele pronuncia). Perora depois acerca de um tal Dongmartin, «príncipe arracanês convertido ao Cristianismo», e só uns minutos depois consigo associar o personagem a Dom Martinho, um dos netos do rei Min Razagyi, cuja história merecerá aqui uma crónica inteira, ou mais do que isso. U Thein Win fala ainda de uma continuada presença portuguesa em Sandoway desde o reinado de Min Razagyi, embora disso não restem vestígios, a não ser, talvez, o edifício que vi em ruínas. «Cheguei a conhecer uma pessoa de Sittwe, não me recordo agora o seu nome, que alegava ter origens portuguesas», diz ele. E, como que a adivinhar minha próxima pergunta, acrescenta logo de seguida: «infelizmente já faleceu». Para compensar dá-me o contacto telefónico do investigador Naung Aye, tradutor da história das relações de Portugal com o Myanmar, «telefone-lhe assim que chegar a Mrauk-U», e o de um amigo artista, residente de Sittwe, actual capital do Arracão.
Joaquim Magalhães de Castro