CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLVII

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLVII

Os Huteritas – III

A vida huterita é construída em torno da Bíblia, na espiritualidade e na ética. E esta fundamenta-se na vida em comunidade, onde o princípio máximo é em grande parte o amor ao próximo. Tudo é com unidade, tudo é comunitário. Tudo, desde a comida, as roupas, os óculos e outros acessórios, os quais são fornecidos pela comunidade e, em troca, os homens devem voluntariar-se para construir casas e fazer outros trabalhos necessários na colónia. Trabalha-se para o grupo e o grupo sustenta-nos e ajuda-nos. Fora do grupo, não há huterismo, porque não há garantia de vida comunitária de acordo com os padrões huteritas.

Do ponto de vista espiritual, como é o anabaptismo huterita? É essencialmente cristocêntrico, ou seja, Jesus é o centro da fé, o seu autor e o seu consumador. As Escrituras são interpretadas a partir d’Ele, a quem se deve seguir e imitar na vida quotidiana, como discípulo submisso. A comunidade é o centro da vida, tornada possível através do perdão e da fraternidade. As Escrituras são estudadas de forma individual mas também comum, para que todos aprendam a aplicá-las ao nosso tempo, para que todos se aconselhem mutuamente e confrontem experiências, e troquem ideias, interpretações. Não dependem nem sublinham apenas a interpretação individual, ou de pastores e ministros, mas também, ou principalmente, do estudo comum, em grupo, como base da interpretação. Uma igreja saudável é feita de grupos pequenos, comunidades reduzidas, defendem os huteritas.

RECONCILIAÇÃO E COMUNITARISMO

A reconciliação é o projecto de vida do crente, que deve responder ao chamamento de reconciliar as pessoas com Deus através da fé em Jesus. Reconciliar é tanto evangelizar como construir a paz. Por isso, recusam a injustiça e a violência, procurando-se sempre alternativas pacíficas e nunca o conflito.

Como os demais anabaptistas, os huteritas privilegiam mais a vida do que a morte de Cristo, cuja santidade reside na graça de outorgar o perdão. Afirmam sempre que Jesus veio para viver, não tanto para dar a vida. A Sua morte foi em parte o resultado do Seu projecto de vida. E porque enfatiza a vida, ressuscitou, para seguir a vida e ensinar a todos a fazer o mesmo. Todos são discípulos, todos O devem seguir.

A Bíblia dos Huteritas é “cristocêntrica” também. É inspirada, sem dúvida, revelada, mas a plena revelação é Cristo, que é a autoridade final para se tomarem decisões. Ou seja, Cristo cumpre o Antigo Testamento e apresenta-se como a norma para uma ética pessoal e para uma ética social. Os huteritas referem que a maior parte dos cristãos tendem a ver as Escrituras como a autoridade final e não Jesus Cristo. Entendem assim que o guia da vida diária procede de vários textos que parecem aludir a cada situação que se vive no quotidiano. Mas não é necessário, todavia, que todas as decisões coincidam com os ensinamentos ou espírito de Cristo.

A sua distância em relação ao Estado e ao poder, aos Governos, deriva da sua crença de que estas instituições se devem inspirar em Cristo e regular-se por Ele. Se assim não fazem, para quê enquadrar-se nesses poderes e instituições derivadas? Sem desrespeitar as leis, porque defendem a paz e a reconciliação, a não-violência, optam por viver em comunidades isoladas a sua marcha de vida de acordo com a sua espiritualidade.

Na comunidade como centro de vida huterita, enfatiza-se o perdão horizontal. Ou seja, os cristãos precisam tanto do perdão vertical de Deus como do perdão horizontal de uns para os outros, da comunidade. Esta é por isso edificada pelo perdão, horizontal, que é o meio para que existam relações de paz na comunidade. O perdão não é apenas encarado como um meio de se receber a salvação individual e a vida eterna, na forma vertical, mas também o de criar bases de irmandade e paz entre os membros da comunidade. Só há comunitarismo huterita existindo um ênfase no perdão horizontal. Por isso, cada igreja é como uma família, una e coesa, confraternal e focada no estudo e oração comuns, na partilha e na entreajuda. A igreja entre os huteritas, não é vista tanto como uma estrutura, uma organização ou uma actividade de Domingo de manhã, mas algo familiar, comum, vivencial e diário. A adoração e contemplação não se resumem à congregação dominical, mas sim a cada um e em grupo, diariamente e aplicada à realidade.

Os huteritas destacam a natureza bondosa, amorosa e protectora de Deus, pelo que procuram, através do Espírito, chegar a ser como Cristo e poder receber o dom de viver como Ele no dia-a-dia. Não basta a santidade de Deus e a justificação pela fé, ou pelas obras, mediante o sacrifício de Cristo. Tão importante é receber o perdão, perdoar, reconciliar, pessoal como socialmente. Fazer a paz, enfim, de forma evangelizadora, o que implica que seja de forma comum, não apenas individual: todos trabalham pela sua salvação, mas na sua forma de vida e espiritualidade fazem-no também pelo outro, pelo grupo. Para evitar que as ovelhas se tresmalhem…

Em relação à autoridade, esta existe na medida em que a obediência a Cristo o permita. Ou seja, se não se encaixar naquilo que os huteritas entendem como lei de Cristo, não a observam. Por exemplo, recusam ordens de participação em actos de violência ou de imposição da autoridade de forma coerciva. Não cumprem o serviço militar e devem corrigir os problemas procurando sempre alternativas pacíficas e que não gerem injustiças, além de que por norma procuram sempre a reconciliação. Se a autoridade exige acções contrárias aos ensinamentos de Cristo e à própria consciência, os huteritas afastam-se dela, sem violência nem escândalo. Não há violência redentora nem guerra justa entre os huteritas.

Mas onde está o Eu, a pessoa no singular numa comunidade huterita? Como se é quem é? Onde começa a personalidade e o privado, o íntimo? Muitos dos que não são huteritas consideram a sua forma de vida como claustrofóbica, isolada, difícil de suportar, uma negação do eu. E nem todos a suportam, entre os huteritas, nem em parte nem no todo….

Vítor Teixeira

Universidade Católica Portuguesa

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