CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 14

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 14

Em busca de Sandoway

Retemperadas as forças, e antes que os tépidos ares marítimos me entorpeçam o corpo e enevoam o espírito, está na altura de fazer uma visita a Thandwe. Como meio de locomoção recorro a um motociclo eléctrico de fabrico chinês e antes de me meter à estrada faço bem as contas aos quilómetros que a bateria permite, caso contrário arrisco-me a ficar a pé a meio do caminho.

Contarei com a contínua presença, ao longo desta agradabilíssima jornada, das nossas já conhecidas acácias de madeira vermelha, mas também das thanakas – de onde se extrai o homónimo cosmético natural que os birmaneses de ambos sexos tanto gostam – e ainda de alguns especímenes do jacarandá-da-Birmânia, árvore oficial do País, cuja madeira é usada no artesanato e fabrico de mobília.

A minha breve passagem pelo centro da cidade resume-se a uma imensa decepção. Aparentemente, nada revela o ilustre passado da velha Sandoway, que chegou a ter como seu governador Min Bin, talvez o mais determinante soberano desta nação. A história conta-se numa penada. Em 1513, Raza, oitavo rei da dinastia arracanesa, é assassinado por Gazapati (um dos filhos que tivera com uma concubina) e este apossa-se do trono. Min Bin, legítimo herdeiro, engole a afronta do seu meio-irmão e sai de mansinho de cena, sobrevivendo assim a uma série de intrigas e lutas internas numa corte que verá três reis diferentes (Gazapati, Saw O e Thazata) em oito anos. Em 1521 morre Thazata e o seu irmão mais novo, Minkhaung, ascende ao trono. Min Bin, sempre discreto, consegue a proeza de ser nomeado governador de Sandoway. Aí, pacientemente, congregará em seu redor seguidores leais e suficiente quantidade de armas para, em 1532, marchar com forças terrestres e navais até à capital Mrauk-U e destronar o usurpador Minkhaung.

Tudo se passou pelo menos uma década antes da atribulada estada do nosso Fernão Mendes Pinto em Sandoway, ou Sandavi, como ele lhe chama. Apesar de toda esta relevância histórica – vendo bem as coisas, Thandwe foi a segunda cidade mais impactante do Arracão e ainda o é, administrativamente falando – nada ficou. Ruínas? Nem um amontoado de pedras para amostra. Museu? Nem vê-lo! Entidade capaz de elucidar, dar indicações, uma pequena luz que seja sobre tão fascinante matéria? Nicles.

Para não sair dali a zeros subo à colina de Wathura, de onde o pagode Shwe San Daw olha em linha directa o seu rival da margem oposta, Shwe Ann Daw. Ambos se orgulham das relíquias de Buda das quais são guardiões, suficiente motivo para as visitas regulares de muitos peregrinos. Para os descrentes vale-lhes a paisagem que dali se desfruta, destacando-se desde logo o domo dourado de um mosteiro budista nas margens do rio homónimo da cidade que ali faz um caprichoso “ésse”, posicionando-se os dois polos habitacionais da moderna Thandwe como cotovelos opostos ou, em versão esotérica, a gémea forma geométrica do “yin” e do “yang”, funcionando neste caso o rio como a linha que os separa.

Fora do perímetro urbano, na rua principal, a poucas centenas de metros do pagode onde me encontro, avista-se a torre sineira da igreja da Nossa Senhora de La Salette, o único sinal visível do Catolicismo local. Missionários dessa congregação chegaram a Thandwe, nos finais da década de 1930, numa altura em que eram precisos dois ou três dias de navegação, desde o porto de Yangon (Rangun). E é tudo o que parece haver em termos de Catolicismo… Este outeiro é o local ideal para tentar visualizar a descrição de Mendes Pinto do ataque a Sandoway. Diz-nos ele que os birmaneses cercaram a cidade e acometeram-na “três vezes à escada”, sem sucesso, pois ferozmente resistiram os de dentro.

Tendo em conta a descrição é de crer que a cidade fosse fortificada, e bem!, pois “o muro era todo piçarra”. Porém, por mais que olhe em redor não consigo perceber onde terá existido o afamado paredão…

Tabin, frustrado, aconselha-se junto dos assessores militares e estes, sem hesitar, recomendam um ataque de artilharia. De imediato são posicionadas “vinte peças grossas de esperas e camelos de marca maior” e, além disso, “mais de trezentos falcões” que disparam o tempo inteiro. Aquela gente não brincava em serviço! O pesado calibre das munições fez os esperados estragos, derrubando dois lanços da muralha de uma assentada. Perdidos por cem, perdidos por mil, os sitiados, aproveitando a brecha, saíram em catadupa dispostos a tudo. Ou seja, e em linguagem popular, deu-lhes um “amoque”. Curiosamente, este termo tem origem na costa de Malabar, onde vivia uma gente que preferia morrer a ficar cativa. Eram os ditos “amoucos”.

Garante Pinto que em menos de uma hora foi desbaratado o exército invasor, tendo sido reerguido o paredão com “entulho de vigas, terra e faxina”, tornando ineficaz qualquer operação de artilharia. Face ao desaire, o general Bayinnaung, decide estender as operações aos arredores da cidade, encarregando o tesoureiro-mor que trazia cativos Pinto e outros oito portugueses de liderar o ataque a um local chamado Valeutay, “de onde a cidade era muitas vezes provida de mantimentos”. Mas também aí a coisa não correu bem e “em menos de meia hora”, garante o cronista, “não ficou dos cinco mil nenhum que não fosse morto”. No clamor da briga, por ser de noite, puderam os oito portugueses escapar e assim fintar a morte certa e o cativeiro de desfecho incerto. Podem pois, Mendes Pinto e companheiros, agradecer aos arracaneses que involuntariamente lhes salvaram a pele.

Joaquim Magalhães de Castro

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