Da vida e da linguagem das estátuas
Acontecimentos recentes, a nível internacional, levam-me a revisitar um tema que me é caro, pela sua forte simbologia. O título desta minha crónica quase o desvenda, na sua integralidade.
Quase todos nós somos hoje turistas, regulares ou ocasionais. E muitos, por razões de comodidade, aceitam a disciplina do turismo de grupo, com guia (tagarela ou macambúzio), munido de bandeirinha; os distintivos na lapela para nos identificarem com “aquele” grupo e não outro – e aí vai a procissão por dias ou semanas a fio, a bisbilhotar templos e museus; e a ler as descrições em cada quadro, em cada escultura, em cada monumento – numa estafadela penosa, com que pensamos aumentar a nossa cultura geral e garantir o suprimento de fotos, com que fazer inveja aos amigos no Facebook.
As nossas visitas de turistas, ocasionais ou não, conduzem-nos fatalmente, com ou sem fé religiosa, à visita de templos, igrejas, basílicas, catedrais, enfim, um sem número de autênticos museus, repositórios de objectos de arte-sacra, onde se evidenciam as estátuas de grandes nomes da espiritualidade, no decurso dos séculos, como os muitos santos da tradição cristã.
O culto mariano, central no Catolicismo, está profundamente associado, como sabemos, às estátuas da Virgem, de Fátima, de Lurdes, da Aparecida, de Guadalupe, etc.
E nessas estátuas, em todas as estátuas, sagradas ou profanas, admiramos naturalmente a arte do escultor que, quando bem sucedida, nos transmite vida – a vida e a linguagem daquela estátua.
É que, com vida e linguagem próprias, cada estátua é portadora de História. E nós, na nossa cultura onde a imagem está muito presente, lidamos bem com as estátuas, que são a sua tradução física, plástica. E como nós muitas outras civilizações, à excepção do Islão onde a imagem é considerada sacrílega, por tentar imitar Deus, o inimitável. É uma concepção que compreendo e respeito, naturalmente, revendo-me embora, por educação e sensibilidade, na nossa própria tradição.
Saiamos agora para a rua e vejamos as estátuas que polvilham praças e jardins públicos. Generais a cavalo, todos necessariamente bravos. Antigos e novos líderes. Homens e mulheres da cultura e das artes, da literatura e da filosofia, da pesquisa científica e do espaço. Todos queremos honrar, realçando-lhes contributos que não queremos esquecer. Mas tais contributos passam continuamente pelo crivo da História. E o reexame do passado é tarefa inevitável das gerações vindouras. E assim chegamos ao nosso presente.
O MERGULHO DE MR. COLSTON
Bristol, Reino Unido, Junho de 2020. Quando a estátua de Edward Colston, um comerciante de escravos, foi derrubada e atirada ao Rio Avon pela multidão, no contexto das manifestações anti-racistas, iniciadas dias antes nos Estados Unidos, devido à morte brutal do afro-americano George Floyd, por um polícia branco, quando a estátua de Colston foi derrubada, dizia eu, na outra margem do Atlântico, reacendeu-se um debate sobre a perenidade histórica de monumentos, em honra de ex-heróis que afinal a própria História viria a condenar.
A estátua foi erguida em 1895 na Colston Avenue e o nome de Colston é comum em Bristol. Por exemplo, existem ruas e escolas com o nome de Colston. Além disso, a casa da música de Bristol chama-se Colston Hall, mas representante da instituição revelou que considera uma mudança de nome.
Acredita-se que Colston tenha transportado mais de oitenta mil africanos que foram vendidos como escravos.
Se me fosse possível exprimir, de forma útil, uma opinião sobre a iniciativa dos manifestantes de Bristol, diria que a sua intervenção cívica, ultrapassada que fosse a gestão da sua actual ilegalidade, deveria ser completada pela edificação no mesmo local de um monumento/estátua anti-escravatura, substituindo assim, para todo o sempre, a mensagem errada pela mensagem certa.
Mas na Grã-Bretanha, a polémica em torno da estátua de Cecil Rhodes, na Universidade de Oxford, como que inaugurara, anos antes, a controvérsia sobre como interpretar, com os olhos do presente, o papel daqueles que mais marcaram o passado de cada povo.
E o passado de cada povo é feito, como percurso colectivo que é, da mesma luz e das mesmas sombras dos percursos individuais. Glorifique-se quem se quiser e como se quiser, a História nunca deixará de ser senão a grande narrativa da aventura humana, só humana, e não uma colecção de mitos em torno de pequenos e grandes deuses, habitando o Olimpo de cada época.
Olimpo que teve nos Impérios europeus a sua expressão terrestre a mais acabada. Pelo poder acumulado, pelo luxo das cortes, pela injustiça da ordem política estabelecida e pela convicção subjacente a tudo isso, a da superioridade natural, biológica, de quem dominava. A Ásia, a China, sabem infelizmente “algo” a esse respeito.
Aliás, nos países europeus, com história imperial, não é fácil ainda hoje aceitar-se que a História não se escreveu apenas a letras de ouro, nas antigas possessões. Basta ler, aliás, a narrativa das jovens independências e da luta que as antecedeu, com suas versões diferentes.
E com as jovens independências, substituiriam-se inevitavelmente as estátuas. Porque as estátuas têm a sua linguagem e esta tem o seu tempo. A menos que consiga desafiar o próprio tempo!
DO INÍCIO E DO FIM DOS CAPÍTULOS
As estátuas celebram as novas eras, assim como o seu derrube inevitavelmente confirma o fim de capítulos que podem custar a encerrar.
Em 28 de Outubro de 1886, o Presidente americano Grover Cleveland inaugurou a Estátua da Liberdade, perante milhares de compatriotas seus.
Vista como presente tardio do centenário da Independência, da França aos Estados Unidos, a Estátua da Liberdade foi concebida originalmente como um monumento anti-esclavagista, inspirado na criação do poeta e ativista Édouard de Laboulaye. Laboulaye acreditava ser importante celebrar a nova democracia americana, após a Guerra Civil, bem como a abolição da escravatura.
134 anos depois, a América debate-se ainda com o racismo no interior das suas instituições, e na Grã-Bretanha os manifestantes anti-racistas decidem “afogar” no rio mais próximo a estátua de um antigo comerciante de escravos.
Num outro contexto, bem mais recente em termos históricos, o regime de Saddam Hussein só caiu simbolicamente em Bagdade quando, em 2003, perante os olhos do mundo e através da CNN, a estátua do líder iraquiano se rendeu aos golpes dos manifestantes.
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As estátuas têm pois uma linguagem e como tal são como que substitutas de seres vivos, cuja eternidade não está nunca assegurada… Tal eternidade depende do legado que deixaram, dos valores transmitidos às gerações futuras.
Se nos parece hoje inconcebível vermos reedificadas, nas praças dos respectivos países, as estátuas dos fundadores do nazismo e do fascismo, que nos lembram inevitavelmente o cortejo de tragédias por si originadas na Europa e no mundo da primeira metade do século passado, é igualmente impensável, pelas razões opostas, não apostarmos no legado universal de personalidades como Martin Luther King Jr. e Nelson Mandela.
E de novo no contexto cristão, com estátuas de vultos mais recentes da Igreja universal, como os três pontífices seus antecessores canonizados pelo Papa Francisco, cujo papel preponderante é mais do que evidente na História da Igreja Católica e do Mundo, obreiros que foram todos de uma certa concepção de humanidade fraterna, plural e não sectária.
Carlos Frota