A Religião da Humanidade – II
O pensamento religioso de Auguste Comte continua a despertar interesse em artistas e alguns investigadores, principalmente, além de curiosidade. Para muitos, há na Religião da Humanidade uma compreensão visionária de uma crise da Racionalidade, da Ciência e das suas limitações, dando-se um retorno do sentimento religioso no mundo contemporâneo, mesmo nas suas vertentes mais fundamentalistas. Este novo apego ao religioso, tem, pois, estimulado novas abordagens à obra de Comte e à sua formulação religiosa.
A Religião da Humanidade, ou Positivismo Religioso, é apresentada pelos seus defensores como uma religião altruísta, que subordina sempre os instintos egoístas ao amor ao próximo. Até aqui, é difícil encontrar diferenças com qualquer movimento religioso sério e organizado, desmaterializado.
A base de acção desta religião é o culto, a parte de maior relevância da religião porque é nela que acontece a sistematização daquilo que é o dogma, a partir do qual se instala o que designam como “regime”. A partir desta construção, Auguste Comte elaborou o “Catecismo Positivista”, onde apresenta a teoria geral e as normas básicas da sua religião. Aqui surgem as diferenças.
O positivismo compreende a religião como uma forma de unidade humana, ou seja, a ligação de todas as partes componentes de cada indivíduo e o seu “religar” aos demais seres humanos.
AMOR E FÉ
Defendem os positivistas que uma religião só o é se cumprir duas condições: Amor e Fé. Como é que estes dois imperativos existem na Religião da Humanidade? O equilíbrio das funções individuais é atingido quando se confere supremacia ao amor, quando o egoísmo é subordinado ao altruísmo (amor ao próximo), conceito tão defendido por Comte. Quanto à fé, os crentes desta religião afirmam que é ela que religa cada homem aos seus semelhantes, aos quais deve dedicar amor. A religião é algo que é característico do homem, defendem, considerando-a indispensável para a vida social, enquanto principio de unidade.
A máxima da filosofia positivista é: “Amor por princípio, ordem por base, o progresso por fim” (L’amour pour principe et l’ordre pour base; le progrès pour but). Esta é a mesma frase que encerra aquilo que entendem que é a Religião da Humanidade. É tida também como uma fórmula sagrada do positivismo e o “leit motiv” da sua forma de vida e expressão de pensamento. O Amor deve sempre ser o princípio de todas as acções individuais e colectivas. A Ordem consiste na conservação e manutenção de tudo o que é bom, belo e positivo, enquanto o Progresso é a consequência do desenvolvimento e aperfeiçoamento da Ordem. Do desenvolvimento da Ordem resulta o Progresso individual, moral e social. Ou então, pode-se entender que existe a significação de “conservar melhorando”, ou seja, conservar e aperfeiçoar aquilo que existe de bom (Ordem) através da correcção e eliminação daquilo que é mau (Progresso). Recorde-se que aquele tridente foi o lema do Brasil, “Amor, Ordem e Progresso”, que foi, todavia, alterado ulteriormente para a fórmula actual, que fez cair o Amor.
CULTO, DOGMA E REGIME
Como a maior parte das religiões, a Religião da Humanidade divide-se em três partes, como já aferimos, correspondentes aos três atributos da natureza humana: o Culto, o qual regula o sentimento; o Dogma, que regula a inteligência; e o Regime, que regula a actividade humana. Mas, curiosamente, esta religião não se dirige a Deus, já que Ele corresponde a um estado teológico que os positivistas consideram como anacrónico, exaurido e sem mais expressão. Contudo, o positivismo não nega a existência de Deus, declara-a sim como algo inconcebível, porque o único conhecimento possível limita-se aos fenómenos, é factual e positivo, portanto.
«O absoluto é um oceano para o qual precisamos apenas de bússola e vela», dizia Émile Littré (1801-1881), filósofo e lexicógrafo francês, positivista. Nesta perspectiva, o maior ser que o homem pode conhecer é a própria Humanidade da qual faz parte, centro imutável da unidade final, em torno da qual virão agrupar-se todos os seus filhos, movidos por um mesmo amor, guiados pela mesma fé e dedicação a uma mesma actividade.
O Ser-Supremo desta religião é assim a Humanidade, representada iconograficamente por uma mulher de cerca de trinta anos com um filho nos braços. A Humanidade reúne os atributos supremos da Natureza Humana, com o máximo de altruísmo e o mínimo de egoísmo, a maior ternura e a maior pureza, cuja utopia é o resumo do positivismo. Segue, ou mimetiza, em boa medida, a Filosofia e Teologia em torno da Virgem Maria, a Mãe suprema.
Há também uma trindade, positiva portanto, na Religião da Humanidade: a Humanidade, que é o Grão Ser; a Terra, ou Grão Fetiche; e o Espaço, ou Grão Meio. Uma vez mais, esta religião adapta e reformula conceitos, princípios e esquemas das outras religiões, em particular do Cristianismo.
A doutrina positivista da Religião da Humanidade visa, pois, estabelecer uma harmonia completa no indivíduo, na Família, na Pátria e na Humanidade. A Religião da Humanidade surgiu desta forma, de acordo com esse princípio, com o objectivo de superar a anarquia moderna, que grassava no mundo no século XIX, a época de surgimento do positivismo.
Existe ainda um catecismo positivista: o Catecismo da Religião da Humanidade, escrito por Auguste Comte em 1852. Esta é a obra máxima e fundamental da religião, pois contém as normas necessárias pelas quais se deve dirigir a vida de cada fiel em harmonia com o todo. A obra é composta de treze conferências explicativas. A Introdução tem duas conferências: a primeira trata da Teoria Geral da Religião, enquanto a segunda trata da Teoria da Humanidade. A primeira parte da obra é sobre o Culto (que regula o sentimento), sendo composta de três conferências onde se encontram as explicações básicas para a realização do culto positivista. A segunda parte é a da Filosofia Positiva, ou Dogma, composta também de três conferências que tratam da concepção geral do mundo e do homem pelo conhecimento das verdades naturais imutáveis. A terceira e última parte aborda o Regime, estando composta por cinco conferências e tendo como objectivo a resignação a tudo que estiver fora do alcance da intervenção humana. Mas há ainda mais nesta religião, como veremos.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa