Os Petrobrussianos
Nas edições anteriores, falámos de Henrique de Lausanne. A sua figura entronca numa outra, Pedro de Bruys, coevo do anterior. Pedro (Pierre) de Bruys, ou de Bruis (ou mesmo Petrus Brusius), nasceu antes de 1095, em Bruis, cantão de Rosans, perto de Gap, em França. Faleceu em 1131, ou em 1140, em Saint Gilles, perto de Arles. Foi sacerdote, teólogo, um pregador influente, tendo ficado famoso não pela sua ortodoxia, mas pelas suas ideias e concepções, que fizeram dele um herege.
Pedro de Bruys era um sacerdote católico numa obscura paróquia em França, múnus que abandonou, ainda no primeiro quartel do Século XII, quando se tornou um pregador itinerante do Evangelho. Alguns entendem que não abandonou, mas foi expulso, devido à sua pouca ortodoxia.
Pedro, no entanto, pôs de lado os ensinamentos de Roma, inspirando-se no Evangelho, quando e como não sabemos ao certo, mas era ainda um jovem sacerdote. O que parece é que o seu repúdio à tradição e ortodoxia eram fortes, o que lhe valeu desconfiança da hierarquia. Desafiou vigorosamente a Igreja, o que lhe valeu a morte violenta que teve, queimado vivo no fogo que pretensamente terá ateado. Para queimar cruzes, segundo a tradição. Entre 1131 e 1140, não se sabe com exactidão. A tradição conta que foi a população que o supliciou, farta de o ver a queimar cruzes.
As informações sobre Pedro de Bruys são raras e todas têm como fonte primária a carta dedicatória do tratado de Pierre, o Venerável (1090/92-1156), abade de Cluny, contra petrobrussianos heréticos (1138, mas renovada em 1141), dirigida aos prelados de Arles, Gap, Embrun e Die (esta última extinta em 1801), dioceses em que a heresia prosperava desde finais da segunda década de Duzentos. Nessa altura estava no auge das suas pregações itinerantes, primeiro nas dioceses de Embrun e Gap, depois em Provence e Languedoc. Há também referências de Pedro Abelardo (1070-1142), teólogo medieval. As doutrinas que conhecemos deste pregador retiramo-las dos erros que lhe são aferidos pelos autores acima citados, que o desconstruíram apontando falha a falha.
EVANGELIOCENTRISMO
É mais um dos casos do evangelismo do pós-ano Mil. Uma corrente que ganharia força, apesar de severamente combatida. De Bruys foi dos que concedeu autoridade praticamente exclusiva aos Evangelhos, que interpretava de forma literal. Para Pedro, os outros livros do Novo Testamento tinham menos valor no plano doutrinário porque não só duvidava da sua origem apostólica, mas, além disso, considerava que as Epístolas traduziam o ensinamento de homens simples e não o de Jesus Cristo. Tinham, assim, menos crédito.
Rejeitou também a autoridade do Antigo Testamento, bem como a dos Padres da Igreja e, claro, a da Igreja Católica. Por fim, desprezava a hierarquia e o Clero Católico, não hesitando em pregar a violência e os seus ensinamentos contra padres e monges. Era, de facto, anticlerical.
A nível doutrinário, era claramente opositor da Igreja Católica. Em que aspectos? Por exemplo, na recusa do baptismo infantil porque, segundo ele, apenas a fé pessoal pode levar à salvação, defendendo que as crianças pequenas não podem ter fé no momento do baptismo. Este deveria ser só para adultos, pelo que rebaptizava todos os que convertia. Rejeitava também a doutrina da transubstanciação: negava que o corpo e o sangue de Cristo estivessem no pão e no vinho da ceia, tendo ensinado que os elementos à mesa eram apenas símbolos da carne e do sangue do Senhor. Negava também o valor dos Sacramentos para os mortos. Ensinou que ofertas, orações e boas obras não trariam vantagens na hora da morte, que o estado de cada um estava estabelecido para a eternidade no momento em que se deixa a terra. Depois vinham as considerações mais “exteriores”, que mais acicataram o povo. Defendia a inutilidade das igrejas, dos seus edifícios e altares, referindo que a Igreja de Deus não é feita de pedras, mas sim da comunhão dos crentes. Via mesmo idolatria no conceito das igrejas como templos. Como várias confissões protestantes da época moderna, como os Baptistas ingleses do Século XVII, acreditava que era errado cantar louvores na adoração. Depois, recusava ver a cruz como um símbolo sagrado porque, para ele, o instrumento da morte de Cristo não poderia ser adorado ou mesmo venerado. As cruzes, portanto, para De Bruys, tinham que ser despedaçadas e queimadas, pelo que as destruía onde as encontrasse. Esta teoria viria, como vimos, a custar-lhe a vida!
A respeito da sua fobia das cruzes, diz-se que numa certa Sexta-feira da Paixão, os seus seguidores, os petrobrussianos, conseguiram converter uma multidão de gente; ora, estes novos convertidos trouxeram consigo todas as cruzes que tinham encontrado e fizeram uma grande fogueira com elas, tendo depois cozinhado carne sobre esse fogo. Em seguida, distribuíram-na entre a imensa assembleia presente. Esta façanha ficou na memória popular e é contada ainda hoje como uma ilustração da sua “profana blasfémia”. Dizia que os crucifixos e as imagens dos santos eram os ídolos que o povo tinha sido ensinado a adorar: quando os seus “olhos foram abertos” por Pedro de Bruys, esses convertidos destruíram-nos, tal como o bárbaro pagão destrói os seus falsos deuses quando se converte, referia o pregador. Que usava ainda o exemplo de Ezequias, quando destruiu a serpente de bronze que durante a peregrinação no deserto se acreditava que tinha poderes miraculosos de cura, quando os israelitas começaram a adorá-la como um deus. Mas logo fora destruída, por ser um ídolo, pregava de Bruys. Além da Missa, Pedro rejeitava a música sacra, os órgãos em especial, bem como o celibato clerical.
Pedro de Bruys foi um pregador vigoroso e convincente, para merecer a crítica de Pedro, o Venerável. As suas palavras e influência tocaram muitas pessoas, nas dioceses meridionais onde pregou (Arles, Gap, Embrun e Die), onde se diz que eram muitos os convertidos e logo rebaptizados. Muitas igrejas foram profanadas ou destruídas, os altares derrubados e as cruzes queimadas. Além das leis da Igreja serem publicamente violadas, os padres espancados, abusados e forçados a casar, a par da abolição das cerimónias e dos Sacramentos.
Pedro e os seus seguidores eram decididamente baptistas, baptizando os reconvertidos. Para ele, o baptismo bíblico requeria a fé dos candidatos, os que não a possuíam não eram aceites. Os petrobrussianos denunciaram vigorosamente os ensinamentos erróneos sobre o baptismo e insistiram muito na fé pessoal. Alguns autores protestantes viram em Pedro um precursor dos valdenses e até da Reforma do Século XVI. Henrique de Lausanne, como vimos, adoptou os ensinamentos dos petrobrusianos por volta de 1135, difundindo-os de forma modificada após a morte de Pedro. Os petrobrussianos, porém, desapareceram, mas não tanto as suas doutrinas….
Vítor Teixeira
Universidade Fernando Pessoa