A memória de São Bartolomeu e os afegãos de Jalalabad
Ultrapassada a portela de Khyber, o imperador mogol acampou na margem do rio Coas (actual rio Cabul), num planalto montanhoso constituído quase na totalidade por um enorme rochedo, “inteiriço e sem fendas ou interstícios”. Prolongava-se para leste numa sucessão de profundas ravinas a uma distância de cerca de duas milhas. Ali, mesmo após atenta vistoria, não se vislumbrava uma só árvore, erva ou vegetação outra, “nem mesmo musgo”, daí ter-lhe chamado Humayun, pai de Acbar, monte Berdaulat, ou seja, “monte sem graça”.
A oeste avistavam-se inúmeras caves de pedra com abertura em formato triangular, e nas quais se entrava pelo topo. Sombrio e áspero lugar, adequado para uma vida de austeridade, sofrimento e reclusão, fora desde sempre habitado por eremitas. Não acreditava Monserrate que os ascetas hindus, “que apenas desejam atrair a atenção popular através de demonstrações de piedade”, tivessem abraçado outrora existência tão severa, e a prova disso é que as grutas se encontravam agora desertas apesar da abundância “desses ascetas inúteis”. Para o sacerdote, tinham sido as catacumbas escavadas, e depois habitadas, por cristãos, “desses que preferiam viver perto de córregos e rios”, ou seja, o fruto do labor missionário do apóstolo São Bartolomeu que em tais paragens pregara o Evangelho. “Lemos nas histórias eclesiásticas que São Bartolomeu viajou pela Índia, pois fora-lhe atribuída essa área de evangelização”, esclarece António de Monserrate.
Uma vez expulsos os cristãos de toda aquela região – e aqui o catalão insiste naquela ideia errada da presença de cristandades no Norte de Índia em tempos mais remotos –, essas grutas ficariam abandonadas tornando-se alvo de inúmeras estórias e especulações disseminadas entre os viajantes.
Três milhas adiante, a comitiva deparou com o forte de Behosh-palang (“lince louco”), recentemente despejado de toda a guarnição de Mirza Khan, assim como da população em geral, receosa da tropa de Acbar… Dois dias depois, esta chegava a Jalalabad, tendo sido montado o acampamento uma vez mais na margem do Coas, a uma milha da cidade. Aqui o príncipe Murad, à frente de parte substancial do exército, deveria aguardar o regresso do pai que partiria para Cabul com um pequeno contingente.
Em Jalalabad permaneceria também o padre Monserrate. Não queria o imperador que um homem desacostumado à guerra, dedicado aos estudos religiosos e literários, e sobretudo de constituição delicada, “empreendesse tão árdua e rápida marcha”. Dera ordens a Murad para que o tratasse com a habitual solicitude; e o príncipe, que “era extremamente afectuoso e obediente para com o pai”, comportou-se com o padre como sempre: com bondade e carinho. Afinal, Monserrate fora o seu tutor. Durante a estada em Jalalabad, aquele aparecia publicamente a certas horas do dia armado com uma espada e na companhia dos guardas de serviço; era também dessa forma que atendia aos negócios públicos. No fundo, imitava o pai. E tal como este também Murad foi capaz de mostrar presença de espírito ao reprimir eficazmente um motim que havia espalhado o pânico pelas hostes. Ordenou aos arruaceiros, “sob pena de morte instantânea”, que cessassem imediatamente a perturbação.
Monserrate aproveita para nos descrever as características geográficas de toda a área situada entre o passo de Khyber e a cidade de Cabul. Uma região essencialmente árida, mas com vastas áreas cobertas de florestas e com picos montanhosos de neves eternas. Mesmo em Julho, a cordilheira Baalanum, doze milhas ao sul da cidade, “arrefecia a atmosfera com as suas neves”. Garantira o Criador aos habitantes dessa região terrenos nos recessos das montanhas nevadas suficientemente expostos ao astro-rei para que ali medrasse a vinha e os pomares de pereiras, romãzeiras, pessegueiros, amoreiras, figueiras e demais árvores frutíferas. Habitavam a região os nossos já conhecidos patanes, a quem os mogóis denominavam de “aufgan”. Note-se que é a primeira vez que Monserrate usa o termo “afegão”. Vivia toda aquela gente da agricultura, dispensando porém o uso de animais de tracção e das balsas para atravessar os rios. Uma vez em terra, carregavam eles próprios os seus bens, pendurados às costas por um jogo de cordas entrelaçadas por onde passavam os braços – um engenhoso método ainda hoje muito comum naquelas paragens. E assim caminhavam erectos, mesmo sob o peso de cargas descomunais.
Nos rios as mercadorias eram transportadas em cima de peles de boi insufladas e embebidas com piche líquido para as tornar impermeáveis. (Cheguei a vê-las inúmeras vezes quando deambulei entre o Paquistão e o Afeganistão, na década de 1980). Uma vez acomodada a mercancia em cima dessa espécie de jangada de couro, o seu dono sentava-se em cima dela e direcionava a pele insuflada rio abaixo, aproveitando a correnteza e esforçando-se sempre para manter uma rota razoavelmente boa, o que nem sempre era evidente como se pode imaginar. Monserrate diz-nos que esses homens vestiam uma roupa curta “que descia até o joelho” (o famoso shalwar-kameez) e eram grandes apreciadores da primeira das artes. Diz ele que cantavam docemente acompanhados da flauta ou da lira, “com tons altos livres à maneira europeia, não com notas baixas e trêmulas à maneira asiática”.
Joaquim Magalhães de Castro