Encruzilhadas e mutações em Zhengzhou
Berço da nação chinesa, a província da Henan, banhada ao longo de 700 quilómetros pelas águas do Rio Amarelo, entrou no século XXI com toda a ousadia e determinação. Em singular coexistência com a modernização acelerada e o orgulho próprio dos seus habitantes, permanecem aí – dir-se-ia um universo paralelo – marcos de uma herança histórica-cultural multissecular. Das sete capitais que o Império do Meio teceu, três delas situam-se na província de Henan. São elas, Kaifeng, Luoyang e Anyang. Mas Henan foi também o berço de muitas outras coisas: do Tai chi ao I-ching (Livro de Mutações), do Wushu a Deng Yaping, a imbatível e já lendária campeã de ténis de mesa.
Com seis milhões de habitantes, Zhengzhou – responsável pela província mais populosa da China, com 91 milhões – é uma das quarenta cidades da China com melhores condições de investimento. Tirando partido de uma situação geográfica privilegiada – no centro da China, principal ponto de confluência viário e ferroviário – Henan está empenhada, desde 1992, altura da sua abertura ao mundo exterior, em continuar a marcar pontos nas listas das cidade com maiores níveis de desenvolvimento. Fornecem-nos estes números os dirigentes locais. Responsáveis da província, das principais cidades, da bolsa de valores ou das principais unidades industriais. Números que falam por ai, quer se tenha ou não gosto e aptidão para a matemática. «Temos a maior estação ferroviária da Ásia», afirmava aqui há uns anos o funcionário Yue Hiu Ming – cujo sonho era «ser jornalista» – que me pôs ao corrente da estatística logo no primeiro dia, apenas uma hora após a chegada de um grupo de jornalistas de Macau, onde me incluía, ao antigo aeroporto de Zhengzhou.
Mas nem seriam precisas palavras. Ou dígitos sequer. As inúmeras vezes que percorremos a principal artéria da cidade – “Água Dourada”, em Português, numa clara alusão ao lendário Rio Amarelo – com 22 quilómetros de extensão, foram suficientes para sentirmos a febre de uma cidade em plena transformação. Junto aos semáforos, inovadores mostradores electrónicos (hoje bastante frequentes em todo o mundo) cronometerizavam, segundo a segundo, o tempo que se tinha para atravessar a passadeira antes de um novo fluxo de automóveis. Ainda há poucos anos rainhas das avenidas das urbes chinesas, já então os velocípedes se perdiam no meio dos motociclos, táxis e carros particulares. «Temos ligações ferroviárias com Roterdão, na Holanda», prosseguia Yue Hiu Ming. Ligações que, na altura, serviam apenas para transporte de mercadorias mas que em breve serviriam também passageiros.
Zhengzhou, urbe de confluência ferroviária por excelência desde os primórdios da República Popular, via, no final do milénio, despegarem-se dos seus limítrofes modernas auto-estradas rumo aos quatro pontos cardeais. As habituais designações de carácter internacionalista tinham caído em desuso e os estabelecimentos de então eram baptizados com nomes pomposos do tipo “Clube de Milionários” e até a estátua de Mao Zedong, no centro da cidade, contracenava com um painel publicitário da empresa japonesa Konica.
MUDANÇAS RADICAIS
Quem se desse ao trabalho de folhear um desses guias desactualizados para turista pé-descalço de proveniência anglo-saxônica constataria que no capítulo referente à província de Henan, a sua capital, Zhengzhou, era descrita como um “mar de blocos residenciais de tijolo vermelho quase idênticos, intercalados por unidades fabris”. A descrição prosseguia depois referindo “a grande quantidade de árvores” que ladeavam as avenidas e as centenas de milhares de bicicletas que por elas circulavam. O dito guia de viagem ia ainda mais longe, pois transpunha os muros dos pátios residenciais e intrometia-se na intimidade dos lares. “No interior dos apartamentos” – podia-se ler – “tudo é cimento: paredes, chão e tecto. Os quartos são pequenos e a mobília escassa; algumas cadeiras, uma mesa, a cama e uma lâmpada à mesinha de cabeceira”. Quem assim descrevia Zhengzhou, presenciara-a, no mínimo, há umas dezenas de anos. Se na altura lá voltasse, teria de redigir com certeza um novo capítulo sobre essa capital da província-berço da civilização chinesa.
Com mais de um milhão de habitantes a gigantesca urbe situada no coração da China, importantíssimo ponto de intersecção das vias ferro-rodoviárias, vira o tal “mar de blocos residenciais” transformar-se num oceano de arranha-céus e as suas avenidas ocupadas por “centenas de milhares de bicicletas” terem também agora a presença de milhares de veículos que lhe disputavam terreno palmo a palmo numa luta desigual.
MILIONÁRIOS E ROCK COM ER-HU
No topo dos locais de divertimento de Zhengzhou, poisos de predilecção dos endinheirados chineses, surgia, destacado em frente de todos os outros, o novo-rico “Clube dos Milionários”, com uma Vénus de Milo de estuque à entrada, era o cabaret nocturno do Holiday Inn. Discreta e bem proporcionada, essa filial da conhecida cadeia hoteleira fora construída mesmo ao lado do até à altura mais reputado hotel de Zhengzhou, o International Hotel. O átrio, todo em mármore, anunciava o luxo. O clube nocturno compartia o primeiro andar com uma inocente pizzaria e um bar sino-britânico onde alguns expatriados empregados em empresas mistas locais vinham tomar uma bebida, alguns deles acompanhados por filhos menores. A penumbra, à entrada do cabaret, resguardava-nos a identidade e introduzia-nos numa sala enorme ocupada por dezenas de sofás de espaldares altos, onde se afundavam, esfalfados, os homens de sucesso da nova China, prontos a deitar renminbis pela janela fora. Não estavam sós. Telemóveis repousavam nas mesas de tampos de vidro, onde empregadas de uniforme vermelho, atenciosas e bonitas, aninhavam-se enquanto anotavam num pequeno bloco de notas os pedidos dos clientes. Mais bonitas ainda eram as outras, as meninas sentadas ao lado dos homens abastados, a apaparicá-los com pipocas enquanto estes ordenavam novas bebidas e lhes acendiam cigarros atrás de cigarros. Apanhado de surpresa, o visitante perguntava-se de onde tinham saído todas aquelas mulheres. Namoradas ou amantes dos endinheirados não eram, isso era certo e seguro. Mas em breve se apercebia a razão de ser das portas laterais onde se eclipsavam essas beldades e de onde saiam outras sempre que requisitadas. O filme era fácil de visionar: competia às donzelas fazer com que os clientes consumissem o mais possível. Aliás, prática quase tão antiga quanto a mais antiga das profissões. E, aparentemente, era tudo o que o cliente levava dali. Sorrisos, uns apertões e uns beijinhos da parte dos galifões mais ousados. Mas depois de trocados os números de telefone tudo era possível, não fosse o “mei yuan” (“dinheiro bonito”, como chamam ao dólar em Chinês) quem mais ordena.
Sessenta yuans de consumo mínimo não era propriamente um preço acessível à esmagadora maioria dos chineses. Mas nessa sala havia quem estivesse muito bem na vida, a julgar pela quantidade de bebidas ordenadas e o número de “xiaojes” que os rodeavam. Havia ainda um terceiro tipo de raparigas. Brilhavam em palco assegurando, juntamente com alguns rapazes, um espectáculo de dança e canções que se prolongou pelo menos durante três horas e claramente se inspirava no canto-pop de Hong Kong. As canções e as danças eram acompanhadas por uma banda de músicos que ali ganhavam o seu, mas que – a julgar não só pelo seu aspecto mas também na forma como interpretavam os temas – prefeririam com certeza estar a ensaiar em casa os seus temas rock originais, se pudessem dar-se ao luxo de o fazer. Depois de sucessivos intérpretes nos terem atentado contra os tímpanos, tivemos o privilégio, em jeito de recompensa, de assistir à actuação de um fantástico executante de “er-hu”, que nos prendou com uma electrizante versão rock de um tema tradicional chinês.
Finda a noite, os homens saíram em grupo acenando às raparigas que regressavam aos seus reservados. Vistas bem as coisas, o ambiente da sala apesar de tudo era bastante acolhedor. Nada que se comparasse com os bares de Macau, onde a simples olhadela para a namorada de algum dos putos seitosos que nessa época empestavam os espaços nocturnos, dava direito a prato, garfo e copo no visual, se não fosse outra coisa mais cortante.
Joaquim Magalhães de Castro