Devoção a Murugan antes do Cão.
Nas cidades malaias de Georgetown (ilha de Penang) e Kuala Lumpur o Ano Novo Lunar é antecedido por um acontecimento religioso capaz de atrair mais gente às ruas do que a tradicional solenidade chinesa. Refiro-me ao festival hindu de Thaipusam, que tem nas caves de Batu, uns quilómetros a norte da capital da Malásia, a sua mais visível expressão, embora as ruas arborizadas de Penang acolham ancha multidão, e com a distintiva particularidade: entre os devotos vemos não só os costumeiros indianos tâmiles, chetis e quejandos, mas também imensos chineses, que incorporam o culto hindu no seu já de si sincrético taoísmo. Acrescem ao magote, na qualidade de mirones, estrangeiros (catrefada de fotógrafos aos empurrões) e o ocasional nativo muçulmano, por norma, avesso a qualquer tipo de manifestação pagã.
É Thaipusam festim dedicado a Murugan, filho de Parvati e Shiva, irmão de Ganesha, deidade com muitas versões no Hinduísmo, particularmente venerada no sul da Índia e no Ceilão, sendo ao mesmo tempo “encarnação da luz e da sabedoria de Shiva” a quem os fiéis rezam para superar os obstáculos, pois é a nume mais capacitada para debelar o mal. Também símbolo de virtude, bravura, juventude, beleza e distribuidor universal de favores, a ele se demonstra gratidão, no cumprimento de votos e promessas, com actos de auto-mortificação nesse dia do décimo mês do calendário tamil (thai), quando a lua mais brilha (pusam), daí o termo Thaipusam.
O kavadi (literalmente, “sacrifício em cada passo”) tanto pode ser andor de alumínio, de três a quatro metros de altura e trinta e tal quilos de peso, decorado com penas de pavão e encimado com a imagem de Murugan, como simples pote de estanho ou cobre contendo leite que se leva à cabeça. Antes de colocar o kavadi, e após entrar num transe induzido, o penitente deixa que creditado oficiante lhe trespasse as bochechas com um espeto em forma de seta ou de tridente, e na fronte lhe acople pendentes vários com a ajuda de uma espécie de anzol, às vezes em tal quantidade que turva o olhar ao faquir. Há quem, numa atitude mais radical, fure também a língua. Não é só o rosto a suportar o desafio. Se não carrega o kavadi, o peregrino compensa o sacrifício cobrindo torso e costas com pequenos sinos, limões ou até cocos presos à pele pelos ditos anzóis. Os mais ousados vão ao ponto de testar os limites da elasticidade da mesma ao afixar na parte superior lombar ganchos presos a cordas que o melhor dos amigos se encarrega de puxar enquanto o penitente avança. Há quem, recorrendo a este processo, desloque pesados carros alegóricos! É, de facto, coisa impressionante de presenciar. Garantem os portadores de kavadi não sentirem dor alguma enquanto envergam a estrutura e nenhuma cicatriz deixa tal façanha. “É algo de milagroso”, atestam até aqueles que não comungam da crença, caso dos cristãos e muçulmanos locais. Neste desafio – aceite também por mulheres, embora estas não cometam grandes exageros – pedem meças, numa espécie de competição surda, tâmiles e chineses.
O segredo parece estar na preparação para tão árdua tarefa. Mês e meio antes do Thaipusam devem os devotos cumprir dieta rigorosa, abstendo-se de qualquer tipo de estimulantes. É fundamental “clareza de mente e saúde física”. Na manhã do dia do festival congregam-se junto aos templos os penitentes para se submeter aos ganchos e espetos, encorajados pelos gritos sincopados de amigos e familiares. Há-os que rapam a cabeça, cobrindo-a com cinza em sinal de despojo material. São vários os quilómetros a percorrer, sob um sol escaldante e numa rota definida com recta final na Jalam Ulama, a dita “estrada do oeste”, ladeada por barracas patronizadas por coloridos altares dedicados às diversas divindades hindus. Protegidos por toldos sentam-se os espectadores. Sim, porque de um espectáculo se trata. Com muita dança e estridente música projectada para o espaço por gigantescas colunas que abafam o sentir da turba comprimida rua acima, rua abaixo. Em dia de Thaipusam, comida e bebida é por conta da casa. Certamente para agradar aos deuses e deles receber benesses se dão à azáfama empregados e donos dos restaurantes e associações que se voluntariam para dar de beber e comer às milhares de pessoas presentes.
Um chinês de quarta geração, natural de Penang, garante-me que participa todos os anos e que a família nunca se esquece de «prestar homenagem ao Senhor Murugan, junto ao Templo da Cascata», um dos três locais de culto hindu e destino final de todos os pagadores de promessas. Os chineses referem-se a Murugan como Ti Ti Ang Kong, ou seja “o deus dos Chetis”, e abundam os milagres a eles atribuídos: da cura de doentes no leito da morte ao exorcismo de inimigos e larápios. Conta-se a história de um ladrão que, aproveitando o momento em que os sacerdotes preparavam os rituais para o dia seguinte, tentou retirar uma joia de um templo. Porém, assim que as mãos tocaram a pedra preciosa as portas automaticamente se fecharam deixando-o prisioneiro. Em pânico, o ladrão pediu socorro e os brâmanes alertaram a polícia que pouco depois o detiveram.
Apesar de não dominarem os trâmites do panteão hindu, os chineses de Penang são tão ou mais devotos que os compatriotas tâmiles, como o pude comprovar na manhã em que uns e outros se preparavam para carregar os kavadis. E essa devoção sínica estende-se também a Ganesha, o “deus elefante”. Bem os vi, novos e velhos, juntando as mãos em oração e acendendo pivetes em frente ao seu altar. Afinal, é a ele que se intercede quando se pretende ter sucesso em qualquer tipo de negócio.
Joaquim Magalhães de Castro
Muito bom seu texto!! discordo de alguns pontos, mas no geral, eu gostei bastante!grande abraço!! parabéns!