Chá e vela

Escrevi a última crónica sentado no poço do veleiro a olhar para o mar em Bequia (São Vicente). Desta vez estou dentro do barco porque está a chover com vento fortíssimo em Carriacou (Grenada).

Foi uma semana preenchida com muita vela, chuva, vento e também muito Sol. Como planeado, saímos de Bequia, em direcção às ilhas mais ao Sul. Planeávamos visitar Canouan mas decidimos ir directamente para Marieaux, mesmo ao lado das Tobago Cays. Acabámos por não visitar este parque natural marinho (Tobago Cays) porque o vento estava forte e queríamos rumar a Sul. Pernoitámos nessa ilha com um mar muito incómodo e no dia seguinte, bem cedo, levantámos âncora para navegarmos para a ilha de Union, onde iríamos sair do arquipélago de São Vicente. Pensávamos ficar por ali uma noite mas com a chegada de um barco de amigos (um casal franco-brasileiro), decidimos sair no mesmo dia rumo à ilha de Carriacou, já em Grenada, onde demos entrada no País.

Desde então temos estado por aqui e temos conhecido algumas pessoas interessantes, apesar do local ser pouco mais do que a baía, uma pequena marina e uma vila que nada tem de especial… Os nossos amigos franco-brasileiros continuaram a viagem logo no dia seguinte, juntamente com um outro veleiro brasileiro que já aqui estava e que veio connosco desde Martinica. Nós decidimos ficar mais uns dias e agora vamos ter de prolongar a nossa permanência porque o tempo piorou e vão chegar uns dias de muita chuva e vento. Como estamos confortáveis e a zona é segura é mais sensato ficar do que arriscar chegar à ilha de Grenada, apesar de serem apenas dez horas de viagem.

Entretanto, no dia da nossa chegada ficámos sem o motor de fora de bordo. O tubo que leva a água do mar para refrigerar o motor partiu. Demos pelo problema quando regressámos à noite depois de um jantar com o casal franco-brasileiro. No dia seguinte agendámos o arranjo com o mecânico da marina e ao tentarmos voltar para casa a remos fomos abordados por uma pessoa que vive num veleiro e que perguntou se precisávamos de ajuda. Aceitámos de pronto dado que o vento estava forte e o esforço para remar estava a ser pouco produtivo. Quando chegámos ao nosso veleiro ficámos a saber que é espanhol e tem o seu veleiro na doca seca, também a ser reparado. Foi ter connosco de propósito para nos ajudar, porque nos viu, de terra, a remar com uma criança a bordo. Ficámos bastante surpreendidos com a sua acção e perguntámos o que podíamos fazer para lhe retribuir o favor. Ele disse que não era preciso nada, que temos de olhar uns pelos outros quando vivemos a bordo. Tocados com tamanha bondade prometi-lhe uma cerveja. No dia seguinte, enquanto esperávamos que o motor fosse arranjado, disse que preferia beber chá ou sumo, visto que não bebe álcool.

Já no veleiro com o motor concertado, sentados no poço, entre uma chuvada com ventos a rondar os trinta nós, ficámos a saber que viaja de veleiro desde os anos 80 e que desde 1991 anda pelas Caraíbas entre algumas travessias para a Europa. Está agora a preparar-se para regressar a Palma de Maiorca, onde irá ficar durante os próximos anos porque a mãe, já viúva, está nos oitentas e ele sente a obrigação, como filho único, de estar ao seu lado nos últimos anos de vida. Depois, pretende continuar viagem se ainda estiver com disposição para tal e se ainda não houver condições em Espanha para viver a bordo. É que diz não conseguir viver longe do seu veleiro de ferro de dez metros que, até há cinco anos, nem sequer tinha motor. O motor foi instalado a pedido da sua última namorada – brasileira – que não se sentia segura a velejar sem motor. A embarcação tem apenas uma bateria, não tem frigorífico nem ventoinhas e as luzes do habitáculo só se ligam para ver se funcionam ou quando se tem de trabalhar no motor. É, ou melhor, confessou ter sido, um velejador purista. Agora vai tentando ter mais algum conforto mas, se possível, sem muita tecnologia porque essa só vem atrapalhar com problemas técnicos.

O Jimmy (como gosta que lhe chamem) visitou tudo quanto há para visitar nas Caraíbas, América do Sul e Central e guarda boas recordações de todos os locais. Apenas algumas amarguras da última visita à Venezuela, onde se viu em apuros com as autoridades por três vezes. Duas delas em terra e uma na embarcação. Em todas elas extorquiram-lhe dinheiro, fazendo crer que estava envolvido com drogas.

Da primeira vez, em plena rua, foi abordado pela polícia perto do ancoradouro onde estava e como não tinha passaporte foi levado para a esquadra. Ameaçaram-no com uma pena por posse de droga se não pagasse determinado montante. Acabou por entregar todo o dinheiro que tinha, cerca de 500 patacas, e a situação resolveu-se.

Da segunda vez o mesmo procedimento mas em plena rua por estar a fumar tabaco de enrolar. Acabou por pagar outra vez porque não queria problemas.

A terceira, já noutra localidade da Venezuela, em plena marina onde estava a consertar o veleiro, entraram no barco e disseram que tinha droga a bordo pedindo descaradamente dinheiro para o deixarem em paz. Nessa altura não tinha qualquer dinheiro porque estava para sair do País no dia seguinte, nem tinha forma de receber dinheiro porque na Venezuela as transacções em moeda estrangeira são controladas pelo Governo e restringidas a um pequeno montante diário. Começaram a destruir-lhe o barco, cortando velas e partindo armários para dar a entender que estavam à procura de droga. Levaram-lhe os poucos aparelhos electrónicos que tinha a bordo (chartplotter, computador e telemóvel) e documentos. Acabou por ser salvo pelo dono da marina que viu o que se estava a passar e telefonou para o “chefe” da polícia dizendo que tinha pago o montante mensal de “protecção” e que, mesmo assim, estavam a ameaçar um cliente. Os polícias acabaram por se ir embora, dizendo-lhe que não reportasse o assunto à embaixada espanhola. Se o fizesse acabaria como o velejador italiano que, na semana anterior, tinha sido encontrado morto na embarcação. Veio depois a saber que esse italiano tinha sido também “apertado” mas foi apresentar queixa na capitania marítima. Dias depois apareceu morto no poço do veleiro ancorado precisamente em frente da esquadra da polícia com um tiro na cabeça.

São pessoas como estas que gostamos de ir conhecendo para aprender com a sua experiência. Acabámos de beber o nosso chá (oolong) e ainda teve tempo para nos explicar como teremos de fazer para colocar o leme de vento a funcionar.

Agora vamos esperar mais uns dias até o tempo melhorar para seguirmos viagem até à ilha de Grenada.

João Santos Gomes

 

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